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Ana Gomes: «A justiça portuguesa tem estado muito atrás e muito abaixo daquilo que seria exigível.»

A eurodeputada Ana Gomes foi a convidada da última edição do programa ‘Jogo Económico’, do “JORNAL ECONÓMICO” e, juntamente com Luís Miguel Henrique e João Marcelino, debateu que papel pode ter o informático Rui Pinto na divulgação de informação que pode ser útil às autoridades ou se, por outro lado, deve-se ter em conta a forma como esse manancial de informação foi adquirido.

Abaixo, transcrevemos alguns ponstos da entrevista da eurodeputada Ana Gomes ao Jornal Económico

Rui Pinto deve ser visto como uma oportunidade ou uma ameaça para o futebol português e mundial?

Deve ser visto como uma oportunidade não só para o futebol português e mundial como para as autoridades portuguesas. Porque ele pode ser um valiosíssimo auxílio na recuperação de capitais perdidos em evasão fiscal e em todo o tipo de criminalidade e da mesma maneira que as autoridades espanholas, alemãs, belgas, francesas estão a beneficiar da ajuda de Rui Pinto, as autoridades portuguesas, quer as tributárias quer as policiais e judiciais podem beneficiar da ajuda deste informático. E pelo que sei, é o que já está a acontecer porque depois de ter chegado a Portugal, Rui Pinto comprometeu-se em tribunal a ajudar as autoridades portuguesas. Portanto, ele pode ser uma grande oportunidade para que Portugal corrija muitos dos problemas de corrupção e de infiltração para ajudar a descortinar outro tipo de criminalidade, fiscal e não só, e no fundo para recuperar ativos.

A justiça portuguesa tem o desafio de ter de garantir a segurança de Rui Pinto. Além disso, considera que a nossa justiça tem, sobre si, os holofotes mundiais?

Não vimos já faixas em estádios de futebol por essa Europa fora a pedir que seja concedida proteção a Rui Pinto? Isso é sinal que muitas pessoas, também na área do futebol, querem verdade desportiva a integridade e está preocupada com o Rui Pinto. As autoridades judiciais de que falei há pouco (espanholas, alemãs, belgas, francesas) já estão a colaborar com Rui Pinto porque há interesse que este informático seja protegido. Portanto, a nossa justiça vai estar sob os holofotes, não só no tratamento que dá a Rui Pinto, se valorizam e aproveitam a presença de Rui Pinto em Portugal para esclarecer uma série de casos extremamente complicados de corrupção e de outro tipo de crimes como o branqueamento de capitais e evasão fiscal, sendo que alguns destes crimes têm a ver com a verdade desportiva. Portanto, quer a segurança de Rui Pinto, quer o tratamento que as autoridades portuguesas vão dar à informação que este informático possa ter, tudo isso vai estar sob escrutínio internacional. Num debate recente no Parlamento Europeu sobre um relatório que aprovámos sobre o combate aos crimes fiscais, entre outros, a Comissária Europa para a Justiça, Věra Jourová (responsável pelo combate contra o branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo) enalteceu o papel dos denunciantes e disse como é fundamental a sua proteção. Na resposta a esta intervenção, até chamei a atenção para a importância de que a Comissão Europeia siga com atenção o caso de Rui Pinto. Neste relatório até existe o pedido de constituição de um fundo europeu para proteção dos denunciantes porque está evidenciado o valor de denunciantes como o Rui Pinto, até porque boa parte dos esquemas criminais que temos incluem fundos europeus. Espero que Rui Pinto não tenha o final infeliz que tiveram outros denunciantes e que se reconheça o extraordinário trabalho e interesse público daquilo que ele pode revelar.

A justiça portuguesa tem estado à altura sobretudo nos casos em que está envolvido o futebol português?

Não, considero que a justiça portuguesa tem estado muito atrás e muito abaixo daquilo que seria exigível num Estado democrático e sobretudo em comparação com o que têm feito os aparelhos de justiça noutros países e até as próprias autoridades tributárias. Por exemplo, as investigações que as autoridades espanholas, alemãs, belgas, francesas têm aproveitado a informação de Rui Pinto mostram uma proatividade que não vimos até hoje nas autoridades portuguesas, fiscais ou outras. Quanto à justiça em si, nesse caso ‘e-toupeira’ verificamos que os arguidos que vão a julgamento já não incluem algumas personalidades que deviam ter sido constituídos arguidos se a justiça fosse coerente e consequente com aquilo que ela própria descobriu. Se a justiça portuguesa constitui arguido um indivíduo que é suposto ser o ‘braço direito’ do chefe de um clube, que era um assessor jurídico e que tinha contactos com indivíduos infiltrados no sistema de justiça, ou com possibilidade de se infiltrarem no sistema informático obviamente para descobrir e impedir investigações, isto é altamente grave. E já nem falo de outros casos envolvendo a corrupção de magistrados, como o caso Rangel, onde a justiça não tem feito aquilo que era elementar fazer. Sabemos que a justiça é lenta mas no nosso país, dá a sensação que há muitas infiltrações promíscuas no próprio sistema de justiça que explicam por exemplo a história de um funcionário judicial usar passwords de outros funcionários judiciais para aceder a processos que eram do interesse de determinadas figuras dos clubes de futebol ou a história da captura de magistrados que explicam que a justiça tinha de atuar de forma muito mais incisiva e exemplar, exatamente para não continuar a impunidade. A sensação de impunidade explica o pântano que estamos a viver, não só no futebol, como nos negócios e até mesmo na política. Existem organizações criminosas, autênticas máficas e isso acontece em Portugal e não só.

As autoridades portuguesas devem aproveitar toda a informação que Rui Pinto tenha em sua posse?

Absolutamente! De resto, é isso que está previsto na legislação europeia que prevê a proteção dos denunciantes e é algo que estará previsto numa diretiva europeia que vai ser aprovada em breve. O estatuto de proteção dos denunciantes é muito alargado mas o que já existe em termos de legislação já obriga a proteção dos denunciantes e que valoriza o seu trabalho. Eu sei que há legislação penal portuguesa que tende a excluir como meio de prova informação que seja obtida por meios ilícitos (não sei se foi o que houve no caso de Rui Pinto) mas hoje valoriza-se o interesse público que advém da informação concreta. Foi assim nos casos LuxLeaks, SwissLeaks e Panama Papers, por exemplo.

Foi uma queixa da Doyen que levou à detenção de Rui Pinto. Como classifica esta situação?

Perante as denúncias, as nossas autoridades têm ficado sossegadinhas no seu canto e só atuaram (e isso põe-me doente) a ‘toque de caixa’ de um fundo de investimento nebuloso e duvidoso sediado em Malta com uma máfia cazaque por trás. E é a ‘toque de caixa’ disto que as autoridades portuguesas vão atuar? Se isto é assim, assusta-me! Se calhar ainda vamos descobrir que por trás da tal Doyen, que é um fundo esquisito, estão alguns clubes de futebol com o objetivo de silenciar Rui Pinto. Ou estão os escritórios de advogados que se prestaram a ser intermediários de todo o tipo de negociatas esquisitas e, até porque dispõem de sistemas de segurança informática da ‘treta’ e facilmente são penetráveis, e quando perceberam isso reagiram usaram os seus contactos para fazer as autoridades judiciais agir… um dia iremos perceber isso tudo. O que é que eu disse? Eu disse que ‘o rei vai nu’. Disse o que todos sabem sobre o passado criminal do líder máximo do Benfica. O que me preocupa é que a corrupção a nível desportiva se repercuta para o resto da sociedade, incluindo a corrupção e captura de governantes.