Em relação ao restaurante \"A Lareira\" de Mogadouro, deixo aqui esta \"reportagem\" da \"Revista de Vinhos\":
Restaurante A Lareira, Mogadouro
A Lareira: uma \'lareira\' transmontana
Texto de Luís Antunes
Mogadouro é uma pequena vila de 5.000 habitantes, e outros tantos ou mais emigrados, que regressam no Verão. Num destes regressos, há já 26 anos, o chefe Eliseu Amaro voltou de França, para abrir o seu A Lareira.
No centro da casa está uma enorme lareira, que decalca a que liderou nos arredores de Paris durante 16 anos. Alma da casa: uma enorme paixão pelos pormenores, que se descobre quando se procura mergulhar a fundo neste restaurante recôndito, que importa desfolhar para descobrir.
O nordeste transmontano oferece encantos que se juntam aos do vale do Douro e seus vinhos. No Planalto Mirandês, em pleno Parque Natural do Douro Internacional, a vida corre de uma maneira diferente. Verão acima dos 40º, com calor seco que se suporta com recurso às águas do Douro, que serpenteia entre arribas onde os grifos e os milhafres indiferentes aos homens vogam claro, lá no alto. Amendoeiras, oliveiras e laranjeiras alternam nas encostas, para aproveitarem juntas as capacidades de cada uma reter a água desta terra árida. Do lado de Espanha, tudo é mais inóspito, não há vinhas, não há pomares, poucas culturas, não há estradas, apenas umas casas, uns cais de embarque. Aldeadávila é sítio de barragem imponente, e chegou a ser marcado para central nuclear, mas esse dia não chegou. O rio como estrada de saída explica os caminhos do vinho aqui terem chegado. A DOC Douro e Porto chega aqui perto (Freixo, Mazouco). Produz-se aqui gado bovino (raça mirandesa DOP), ovino (ovelha Churra Galega Mirandesa DOP), e há ainda os burros mirandeses, em vias de protecção contra a extinção, espera-se.
A gastronomia daqui é variada, com a feijoada, a caça (perdiz, javali, coelho, lebre), o cabrito a apoiarem-se nas hortas e pomares para construir sabores ricos e fundados nos anos. Mas por alguma razão, nos restaurantes vibra em uníssono a posta. Posta de novilho, por vezes mirandês, da alcatra, pojadouro, vazia ou lombo. Grelhado no ponto em pedaços grandes e grossos, tem ainda um molho (sucos da carne, azeite, vinagre, alho, louro, vinho branco, sal, malagueta, etc.) que deveria mais vezes ser opcional.
Fiz questão de procurar na zona mais pontos de interesse, para chegar a Mogadouro e A Lareira. Hesitei à entrada, será mesmo aqui? Esplanada ampla, depois café amplo, à moda antiga, grande balcão, mesas e cadeiras pesadas. Outra sala, outra vez ampla, uma lareira impõe-se volumosa. Ao pé, o chefe Eliseu Amaro. Jaleca branca, barrete alto. Vigia a grelha larga, inclinada para fora, onde imponentes postas de carne assam em brasas vivas. É aqui.
A carta
Instalamo-nos nas pesadas cadeiras, olhando em volta a casa está meia, com famílias normais e outras acrescentadas pelas férias. Folheio a carta, advém a estupefacção. Para além de um osso buco do dia com esparguete, apenas postas, costeletas, bifes, cogumelos silvestres. Muito bem, avança-se para o que há. Posta para todo o mundo (alcatra, soube-se depois) e cogumelos para começar. Começam as surpresas. Os cogumelos silvestres são salteados (trifolati, dir-se-ia na Toscana) em azeite com um toque de ervas aromáticas. Carnudos, saborosos e firmes, apesar de terem passado pelo congelador (estamos fora de época) mostram um carácter incomum. A posta vem grelhada na perfeição, com o molho ao lado como é devido à boa carne. Acompanha com um prato de batatas rösti, e uma salada de folhas estaladiças de alface e tomates maduros. Saberia mais tarde que provêm da horta do próprio chefe. Aliás, entretanto já converso com o chefe, confesso-lhe a minha perplexidade perante a pequenez da ementa, discuto os cogumelos, a grelha inclinada, o molho da posta, os copos para vinho.
O chefe Eliseu Amaro
O que descubro é, mais uma vez, uma história de amor. O chefe Eliseu Amaro foi novo para França, onde cresceu e estudou na prestigiada École Ferendi (Escola de Alimentação de Paris). Mais tarde, haveria de ser chefe de cozinha no Le Grand Veneur, nos arredores de Paris, um restaurante que tinha bastante projecção, e uma garrafeira com milhares de crus de Bordéus e da Borgonha. O chefe Eliseu era convidado pelos melhores produtores de vinhos, aprendia e formava, ganhava traquejo e tarimba nas várias componentes da direcção de uma cozinha e um restaurante. Mas o amor à terra natal haveria de ser mais forte, e Eliseu deixou tudo para voltar ao Planalto Mirandês, onde abriu em Maio de 1981 este A Lareira. Do Grand Veneur haveria de trazer o desenho da sua lareira, uma fotocópia daquela que liderou durante 16 anos. Explicou-me que Mogadouro é uma terra pequena e isolada, daí que para manter a casa aberta com os seus 10 funcionários é preciso fazer concessões. Fazer pouco para fazer bem é uma delas. Mas percebe-se que este fazer bem não é conversa fiada. É um verdadeiro prazer dos pormenores, como me confessou horas depois com um sorriso.
Cada pormenor conta
Para apurar as facetas deste fascínio, decidi voltar no dia seguinte, agora com algumas encomendas na bagagem. Depois da hesitação inicial, decidi que vale a pena voltar, mas há um esforço que não pode ser só do cliente para encontrar a verdadeira extensão da cozinha do chefe Eliseu. Um aviso ao telefone quando da reserva, uma menção na carta sobre pratos passíveis de serem encomendados, ou ainda algum trabalho na internet podem ajudar quem aqui vai de propósito, já que os habituais sabem ao que vão. Esta divulgação tem que ser feita pela casa, já que não se pode desperdiçar este talento e experiência passando apenas ao de leve por uma das cozinhas mais intensamente conhecedoras desta região.
Como exemplos (e pretextos), a lista de detalhes que coleccionei. O rösti de batata é um acompanhamento belíssimo para as carnes grelhadas. Embora na minha opinião pudesse ser feito numa versão menor, o que aumentaria a percentagem de superfície crocante, são fruto do cuidado com a selecção das batatas de sequeiro de terras calcadas pelas ovelhas brancas, depois escaldadas com pele, antes de descascadas, raspadas e passadas na frigideira. As carnes são todas desmanchadas e estagiadas pelo próprio chefe numa enorme sala frigorífica. Daí os cortes pouco usuais como o nispo (músculos da perna, perto do perónio) ou o osso buco (chambão) estufados lentamente, resultando a carne numa textura que se desfaz na boca em suavidade equilibrada entre o suave gelatinoso e o músculo fibroso e macio. O esparguete que o acompanhava ficava a dever na qualidade da massa, mas não no ponto al dente perfeito. Outros cortes de carne são destinados à grelha, como um excelente filet mignon, que suplantou a alcatra da véspera em sabor e textura. Da grelha inclinada explicou-me o chefe que se destina a gerir a confecção das várias peças. No núcleo da fogueira, o calor chega aos 1200ºC. Na grelha logo por cima a carne vai selar a 1100ºC, para logo descer para a orla, onde o calor de 700ºC e a grelha mais próxima acabam a carne. Depois, servidas só com sal, mas ao lado o molho de vinagre, alho, azeite colorau, vinho branco, sal e mais uns segredos pode ser interessante como alternativa, com o resultado parecendo um tradicional molho à espanhola mas mais suave.
Ingredientes de qualidade
A sopa de legumes, muito saborosa, deixou o chefe satisfeito comigo: gostei muito que pedisse a sopa, a sopa é importante, ele já sabia que eu ia para provar. Os cogumelos salteados tinham uma interessante textura, que me pareceu de túberas, mas mais saborosas. Esclareceu-me o chefe que são Boletus Pinicolas (ou pinophilus, amantes de pinheiros), que encontraram habitat amigável na vizinha povoação de Castelo Branco, e se têm lentamente expandido, havendo já cerca de 4 hectares onde podem ser encontrados. Rijos e carnudos, têm um mastigar crocante, completado por um sabor terroso e envolvendo-se bem com os restantes silvestres do mix (Boletus Edulis). No Outono há muito mais variedade de cogumelos, que são uma das especialidades do chefe Eliseu, uma reconhecida autoridade nesta causa.
A alface fresca da horta é digna de atenção, com tomate maduro e azeite da produção familiar. Como as cerejas da sobremesa, serôdias, com aspecto amarelo e rosado a dar para desconfiar, mas depois carnudas, vibrantes de acidez e doçura. A perdiz suada no ponto de confecção, húmida, saborosa, com um suave molho picante cor-de-laranja, com aromas flamejados. O acompanhamento cocotte grand-mère, onde o presunto foi demolhado, com castanhas, batatinhas noisette e cogumelos silvestres, daria um prato só por si. Nota negativa para a charlotte de ananás, com o fruto enlatado a envergonhar. Mas a pêra cozida em vinho tinto deixou fãs na mesa.
Planeie a sua viagem
Os pormenores chegam aos copos, mas é preciso pedi-los especialmente. São grandes e um pouco grosseiros, mas chegam para apreciar um vinho. A carta está hesitante entre o regional (exemplo o omnipresente Montes Ermos), o popular e o Douro tradicional, com Quinta do Côtto Grande Escolha, ou Barca Velha, este a bom preço. Mas diante do nosso interesse o chefe surpreendeu-nos com um velho Bairrada (Conde de Cantanhede Reserva 1985) para fazer companhia à perdiz e ao nispo. De onde veio este vinho? Que mais haverá nesse sítio? Que outras surpresas pode o chefe partilhar connosco? Mogadouro é longe, mas A Lareira é um sítio de paragem obrigatória, desde que planeada. O trabalho do chefe Eliseu Amaro ainda não está acabado, é preciso que mais pólos como este brilhem com intensidade, para transformar a paisagem gastronómica do nordeste transmontano.
Avaliação
+ Relação preço-qualidade óptima.
+ Qualidade e rigor em cada detalhe.
Lista muito limitada. Só com encomenda e planeamento aparece uma ementa mais variada e requintada.
Instalações, apetrechos, carta de vinhos, imagem, tudo a precisar de actualização.
Ficha técnica
Restaurante A Lareira
Avenida Nossa Senhora do Caminho 58
5200-207 Mogadouro
Telefone: 279 342 363
Fecho: Segundas-feiras
Refeições: almoços (12h00 às 15h00) e jantares (19h00 às 22h00)
Meios pagamento: não aceita cartões
Estacionamento: fácil
Chefe de cozinha: Eliseu Amaro
Escanção chefe: não tem
Reservas: aconselhadas
Preço médio: 18
BYOB: aceite sem custos
Eliseu Amaro dixit
Em cozinha, de bom pode-se fazer ruim. De ruim nunca se faz bom.
Lista de Vinhos
Carta limitada, com apenas duas páginas. Não há datas de colheita, denominações de origem, nenhuma organização perceptível, tirando a separação dos Vinhos Verdes (4 brancos, todos em 750ml e 375ml). Além do vinho em jarro ou da casa, ambos em branco e tinto, temos 2 rosés, 23 tintos e 9 brancos. 19 vinhos são do Douro ou Trás-os-Montes, 4 do Dão, 1 das Terras do Sado, 2 do Alentejo, 1 da Beira Interior, e há outros de origem desconhecida. Há mais vinhos fora da carta, convém perguntar. Mesmo com apenas esta oferta de vinhos, com um pouco de trabalho de edição conseguir-se-ia melhorar muito a carta. O chefe tem sensibilidade para vinhos e aceita que se levem garrafas de casa. Destaques: Barca Velha 125, Quinta da Bacalhôa 40.
http://www.revistadevinhos.iol.pt/artigo111-a_lareira_uma_lareira_transmontana