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Relato FANTÁSTICO de um dos pilotos que nos transportou até Gelsenkirschen

 

CHAMPS !!!

O convite era irrecusável:
– Queres passar três dias com o Futebol Clube do Porto em Gelsenkirschen, na Alemanha, por ocasião da final da Liga dos Campeões 2004?
– Quero sim, meu querido e estimado chefe de frota. Mas poderia fornecer mais detalhes sobre a operação, por favor?
– Eu explico. O Futebol Clube do Porto vai agora à Alemanha jogar a final da Champions League e o senhor Pinto da Costa fretou um dos nossos aviões (Airbus A340) para transportar a equipa técnica, dirigentes, jogadores, jornalistas, adeptos e convidados, cerca de 270 pessoas no total. O avião aterra em Munster, que tem uma pista com um comprimento razoável e ali permanece estacionado até ao vosso regresso.
– Parece-me bem. Três dias de férias pagas na Alemanha não é coisa que se recuse. Mas que fiz eu para merecer tanto?
– É simples. Nasceste no Porto e consta que até foste sócio do clube. Além disso tens-te portado bem ultimamente…”
– Ultimamente, pois claro.
– Mas há um detalhe importante que também tem a ver contigo.
Comecei a ficar intrigado.
– E qual é esse detalhe?
– Há vários anos que o FC do Porto não freta aviões à TAP. Houve uma operação que não correu lá muito bem, o senhor Pinto da Costa ficou zangado e cortou relações connosco. Uma pena, porque era um bom cliente.
– Muito bem. Mas que tenho eu a ver com isso?
– Tens tudo. És do Porto, já foste sócio do clube e tens talento para operações de charme. Queremos que o FC do Porto tenha uma viagem inesquecível. É um desafio e uma grande responsabilidade. Continuas interessado?
– Claro que sim. Eu gosto dessas coisas.
Mal eu imaginava que o FC do Porto teria mesmo uma viagem inesquecível, mas seria por outras e bem mais importantes razões.

No dia programado, 24 de Maio de 2004, encontrei-me com a tripulação no despacho operacional da TAP no aeroporto de Lisboa e durante o “briefing” fui alertando os tripulantes para as circunstâncias especiais da nossa missão. O avião iria vazio até ao Porto e só depois começava de facto a nossa viagem. Entretanto, em tom de brincadeira, lá fui perguntando a cada um a sua filiação clubista. Para minha surpresa, ou talvez não, ou eram neutros (sem clube) ou eram fervorosos adeptos do FCP. A chefia do pessoal de bordo fez bem o seu trabalho, como se esperava. Mas como o mundo não é perfeito, quando chegou a vez do copiloto Pedro Agostinho se pronunciar saiu qualquer coisa como “… eu sou do Sporting”. Bolas. Isto estava a correr tão bem. Onde terá falhado o filtro?

– Mas levas o futebol muito a sério?, indaguei.
– Nada. Não se preocupe, Comandante, que ninguém vai dar por mim. Também com 270 dragões a bordo só se fosse maluco iria armar-me em quinta coluna. Nem pensar.
– Ufff! Sendo assim respiro de alívio.

Passámos então à fase seguinte. Depois de conferirmos as habituais informações sobre meteorologia, planos de voo, catering, etc, procedemos à análise da operação no aeroporto de Munster, uma estreia para qualquer de nós. Dotado de excelentes serviços e apoios à navegação (estamos na Alemanha, já se sabe) tinha porém apenas uma pista e se esta já não era muito comprida (2,170 metros) no sentido 07 / 25 ainda o era menos no sentido inverso devido a um “displaced threshold”, jargão aeronáutico que significa que uma parte do asfalto não pode ser utilizada para fins operacionais. Claro que ao dizer que a pista não era muito comprida estou a pensar em aviões do tipo do A340, já que para aviões de médio porte como os B737 e A320 aqueles cerca de dois mil metros chegam e sobram. Mas após a consulta das tabelas respectivas chegámos à conclusão que mesmo no sentido mais limitado (25) a operação podia ser feita com toda a segurança, sendo que para isso muito contribuía o facto de o nosso avião transportar nas asas menos de um terço do combustível que precisaria para uma viagem até ao Brasil, por exemplo. Assim, apesar dos 270 passageiros podia dizer-se que o A340 iria operar relativamente “leve” e por isso não necessitava de pistas muito compridas para aterrar e descolar.

Chegados ao Porto o embarque da comitiva não demorou a ter início. Fiquei vigilante e logo que me apercebi que o casal presidencial se preparava para embarcar saí do cockpit, vesti o casaco do uniforme e fui recebê-lo à porta. Beijei a mão de Carolina Salgado e cumprimentei Pinto da Costa desejando boa viagem formulando votos que pudéssemos trazer a Taça connosco. A avaliar pelos sorrisos de ambos o gesto terá sido bem recebido, o que me enchia de esperança em relação ao sucesso da nossa operação. Abro aqui um parêntesis para dizer que não conhecia Carolina Salgado senão dos jornais desportivos. Sobre ela corriam vários rumores que eu sempre descartei atribuindo essas insinuações às rivalidades que sempre existem entre clubes de futebol. Tudo isto para dizer que quando a vi à minha frente, bem vestida e maquilhada, não pude deixar de pensar que se tratava de uma mulher interessante em qualquer parte do mundo. O que ela possa ter feito antes ou depois não me interessa rigorosamente nada.

Terminado o embarque fechámos as portas do avião e fomos completar os preparativos para a viagem. Havia um enorme optimismo no ar e até a TAP entrou na onda ao fazer embarcar umas dezenas de garrafas de champanhe para os festejos do regresso. A vitória era coisa de que ninguém parecia duvidar.

A descolagem fez-se para norte o que me permitiu uma vez mais contemplar Vila do Conde, a cidade onde passei a minha infância e juventude, um lugar que me traz belas memórias e onde volto sempre com imensa ternura e nostalgia. É lá que tenho as minhas raízes e felizmente isso é coisa que nunca se perde por muitas voltas que se dê ao mundo.

Perto do final da subida para a altitude de cruzeiro decidi então saudar os passageiros com o habitual discurso de boas vindas, mas dadas as especiais circunstâncias era bom que desta vez saísse algo bem mais criativo que o habitual. E saiu, claro:
“Bom dia, senhores passageiros. Daqui fala o Comandante do avião que, por acaso, é também o sócio nº 25990 do Futebol Clube do Porto, embora com quotas em atraso, etc, etc”.

Na altura só não mencionei que o atraso nas quotas já ia em mais de trinta anos, ou seja, desde os tempos em que por razões de ordem profissional vim morar para o concelho de de Cascais e comecei a desinteressar-me do futebol. De facto, nesses mais de trinta anos apenas terei entrado uma meia dúzia de vezes em estádios de futebol e dessas pelo menos metade terá sido para assistir a concertos de rock & roll.

Como se esperava a mensagem foi muito bem recebida e de repente os passageiros passaram a sentir-se em casa. Bebiam, fumavam, usavam os microfones de bordo para entoarem os seus cânticos, batiam palmas, enfim, um verdadeiro pandemónio, só que um pandemónio azul-e-branco. Lembro-me do Supervisor de Cabina entrar no cockpit onde já o Miguel Sousa Tavares e outros fumavam e dizer-me com ar preocupado:
– Oh Comandante, metade dos passageiros da cabina de turística está a fumar. Que fazemos?
– Que fazemos? Manda o mais elementar bom senso que não façamos absolutamente nada. Este é um voo muito especial em que as regras são ditadas pelo fretador, o FC do Porto. Se não houver qualquer reclamação iremos continuar com este ambiente de festa durante toda a viagem. Só não queremos que os passageiros fumem nos WC. De resto, haja alegria e que todos se sintam felizes, são os meus desejos.
Pelo cockpit passava toda a espécie de visitantes ilustres, fumadores ou não. Lembro-me por exemplo de um conhecido clérigo de Gaia, figura lendária de adepto do FCP que gostava de contar anedotas “picantes”, como ele lhes chamava. Perguntava ele dirigindo-se a um conhecido dirigente desportivo:
– Oh doutor, sabe qual é a diferença entre um pecado e um milagre?
– Não, senhor abade, respondeu o inquirido.
– Então lá vai. Se eu der uma queca é pecado, se for você é milagre!
O clérigo riu exuberantemente com a expressão de espanto do visado e logo depois retirou-se para saborear com outro público o sucesso da graçola.

A viagem lá decorreu em ambiente festivo e mais nada de especial haveria para registar se não fosse o simpático gesto de António Lobo Xavier, na altura membro dos corpos dirigentes do FCP, que decidiu oferecer meia dúzia de bilhetes para que uma parte da tripulação pudesse assistir à grande final no Estádio do Schalke 04.

No dia do jogo pedi ao Copiloto (ninguém lhe mandou ser adepto do Sporting…) e a mais uns quantos membros da tripulação para tratarem dos preparativos da viagem enquanto uma meia dúzia de privilegiados (eu incluído) iria assistir ao jogo. Nada de novo aqui. Duas décadas antes foi a minha vez de ser “despachado” para o aeroporto enquanto que o meu Comandante da altura assistia a um jogo europeu do Sporting disputado em Sevilha. Portanto, Pedro Agostinho, hoje que és Comandante espero que em circunstâncias semelhantes faças com os teus Copilotos exactamente o mesmo que eu fiz contigo e que antes disso outros fizeram comigo. Sim, vida de Copiloto é tramada mas ao fim de alguns anos isso passa.

O espectáculo dentro do Estádio do Schalke 04 era deslumbrante. Nunca tinha visto nada parecido. As cores, os cânticos, as bandeiras, as tarjas, o imenso entusiasmo das claques, enfim, tudo aquilo me ia distraindo do essencial e mal me dei conta que ao intervalo o FC do Porto já vencia por um a zero. Foi então que me surgiu a primeira ideia. Peguei no telefone e liguei para o meu saudoso amigo Nelson Augusto, também Comandante da frota A340 e elemento preponderante da Direcção de Operações de Voo conhecido pela sua total e absoluta dedicação à TAP, disponível 24 horas / dia:
– Alô, Nelson. Isto está no papo. O FC do Porto vai ser campeão europeu.
– Sim? Boas notícias. Precisas de alguma coisa?
– Preciso. Agradecia que entrasses em contacto com o ATC (Controle de Tráfego Aéreo) e pedisses para eles alterarem o “call sign” do voo de regresso. Em vez de TP8725 dizes que queremos ser CHAMPS, de champions.
– Zé Guedes, tu estás bom da cabeça?
– Estou muito bem, obrigado, Faz lá esse favorzinho.
E assim foi. Horas depois, consumada a vitória, pela primeira vez na história da aviação comercial um avião cruzou os céus da velha Europa identificado pela sigla CHAMPS. Era ouvir os controladores europeus e não só:
– CHAMPS, climb to flight level three five zero
– CHAMPS, you may proceed direct to NTS.
– Switch to control frequency 123.45. Goodbye, CHAMPS
– Well done, CHAMPS. Congratulations. Aqui era um avião da Lufthansa, depois outro da British. Da Alitalia também. Uma verdadeira festa nos céus.
– CHAMPS, I have a message for you: from the entire staff on duty at Eurocontrol, please accept our sincere congratulations!!!

No interior do nosso Airbus a festa era indescritível. Cantava-se, bebia-se champanhe como se fosse água, faziam-se discursos, tiravam-se fotografias com a Taça, trocavam-se abraços, faziam-se juras de amor clubista, enfim, chamar a isto ambiente de euforia seria algo bem redutor. Era muito mais que isso. Apenas uma dúzia de pessoas mantinha um prudente recato: os tripulantes do avião e um senhor chamado José Mourinho que parecia nada ter a ver com a festa. Sabendo que trazia consigo a família (mulher e duas crianças pequenas) fui pessoalmente oferecer-lhe o pequeno compartimento situado por trás do cockpit onde existem dois beliches para descanso dos pilotos em viagens de muito longa duração. Recusou, agradeceu discretamente e continuou a fingir que dormia. Sim, quem é que dorme depois de ter conquistado a sua primeira Champions?

Uma hora antes da nossa chegada ao Porto tive outra ideia. Pedi a Reinaldo Teles que viesse ao cockpit e disse-lhe algo como isto:
– Por enquanto a noite está límpida mas ao amanhecer, hora da nossa chegada, poderá haver algum nevoeiro em Pedras Rubras. Se as condições se mantiverem como estão acha que seria interessante fazermos uma passagem a baixa altitude sobre o Estádio do Dragão onde estão concentrados os adeptos à espera da equipa?
– Grande ideia, Comandante! O pessoal ia adorar. Mas acha que isso é seguro?
– Claro que sim. Iremos manter a altitude de segurança que consta das cartas de navegação, tudo isto previamente autorizado e coordenado pelo Controle de Tráfego Aéreo.
– Vai ser uma loucura no Dragão, tenho a certeza.
– Também acho, mas vou precisar de uma ajuda. Como vamos chegar ao amanhecer dava-me jeito ter uma referência visual para “apontar” ao estádio. Será possível pedir para acenderem as luzes?
– Nada mais fácil. Tem aqui este número de telefone, peça a alguém que entre em contacto e diga que vai da minha parte. Diga também para acenderem as luzes das torres de iluminação. Vai ser lindo!

Estava então tudo preparado para a grande festa e a minha missão aproximava-se do fim. Depois de tanto “charme” derramado para conquistar de volta o FC do Porto só um coração empedernido não ficaria sensibilizado com tanta dedicação, como de facto não ficou. Momentos antes da descida para Pedras Rubras o senhor Pinto da Costa entrou no cockpit para agradecer o nosso empenho e aproveitou para pedir o meu velho cartão de sócio do FCP. Fiquei embaraçado devido às quotas em atraso mas lá o entreguei. Pensei que só o quisesse conferir, mas não: quando dei por mim o Presidente do Futebol Clube do Porto tinha guardado o cartão no bolso do casaco. Um par de meses mais tarde viria a receber em minha casa um novo exemplar, com número de sócio actualizado e quotas em dia. Muito obrigado, senhor Pinto da Costa.

Mas estava escrito que a nossa chegada ao Porto não seria o mar-de-rosas que tínhamos planeado. O voo tinha saído com um atraso considerável de Munster devido aos festejos e à euforia reinante que era transversal a toda a comitiva e isso foi empurrando a estimativa de aterragem na Invicta para o amanhecer, o período mais crítico para a formação de bancos de nevoeiro, fenómeno frequente em toda a região a norte da cidade em determinadas épocas do ano. E assim foi. À medida que nos aproximávamos do nosso destino as informações meteorológicas eram cada vez mais preocupantes: havia formação de nevoeiro sobre o aeroporto e a visibilidade degradava-se a olhos vistos, curiosa expressão se utilizada para avaliar aquilo que se vê. Como se tal não bastasse era na cabeceira da pista em uso (17) que se encontrava a zona de nevoeiro mais denso. Bonito serviço. Nestas condições ficava fora de questão a hipótese de sobrevoo do Estádio do Dragão e instalava-se uma nova e bem maior preocupação: e se eu não consigo aterrar no Porto? De facto as condições meteorológicas pioravam a cada instante e os sistemas de aproximação de precisão (Instrument Landing System, ILS) instalados na pista não eram da última geração pelo que exigiam um determinado valor de tecto e visibilidade para se poder consumar a aterragem em total segurança. Foi então que fiquei verdadeiramente preocupado. Imaginem que devido ao nevoeiro eu não conseguia aterrar no Porto e, sacrilégio dos sacrilégios, levava a taça e os novos Campeões Europeus para … Lisboa!!! Ficaria com a cabeça a prémio, seguramente, ainda por cima na minha cidade natal.

Mas os anjos do futebol resolveram dar uma ajuda e a aterragem realizou-se sem dificuldades de maior graças ao perfeito trabalho de cockpit (obrigado, Pedro Agostinho) e ao excelente avião que, sem dúvida, é o Airbus A340. Todos respirámos de alívio no momento em que os passageiros desembarcaram e a nossa missão foi dada como terminada. Pela minha parte fiquei com a sensação que as relações entre a TAP e o FC do Porto teriam ficado normalizadas a partir de então e que a tripulação deste serviço terá dado um contributo decisivo para que tal viesse a acontecer.

Infelizmente quando uma equipa portuguesa voltar a jogar uma final da Champions League já não serei eu a pilotar o avião mas podem ter a certeza que esteja onde estiver vou fazer muita força para que a Taça volte para Portugal e que o voo de regresso tenha o melhor e mais criativo “call sign” da história da aviação comercial portuguesa: CHAMPS.

(fonte: página de facebook “O Aviador”)