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Natural da Covilhã 19 de Janeiro de 1922
Numa casita modesta da Rua do Outeiro, na cidade da Covilhã, lá em cima, junto dos picos da serra da Estrela, nasceu António Feliciano. O pai era tintureiro de fazendas e a mãe tecedeira. Órfão ficou aos seis anos. A mãe, com quatro filhos para criar, conseguiu que António entrasse na Casa Pia. O futebol era o seu fascínio, a única paixão da sua vida. Aos 17 anos inscreveram-no, oficialmente, no Casa Pia Atlético Clube. Davam-lhe o dinheiro para os eléctricos, mas mesmo que os jogos fossem nas Amoreiras ou no Campo Grande ia a pé, para ficar com os 16 ou 24 tostões para a borga. Começou por ser médio-esquerdo, mas depressa se fixou como defesa. O seu primeiro treinador foi o jornalista Ricardo Ornelas, que nem sequer imaginava que, por vezes, Feliciano jogava clandestinamente no... Hotel Borges. Eram renhidos os jogos entre hotéis de Lisboa, os mais argutos iam à Casa Pia aliciar os jovens que começavam a despontar, oferecendo-lhes, em caso de vitória nos campeonatos, prémios de 20 escudos ou... cinco maços de Paris. Era um luxo. «Quando regressava a Belém era um rei.»
Depressa passou para a equipa de honra do Casa Pia. Deu nas vistas e o Benfica interessou-se. Nessa altura já jogava como terceiro-defesa. E foi num jogo com o Benfica, para a Taça de Portugal, nas Salésias, que o seu destino ficou marcado. Alejandro Scopelli assistiu à partida e ficou deslumbrado com o defesa-central. Era o homem que procurava para substituir Tarrio. Mas, através de Miguel Siska, do Porto, outro canto de sereia. «Cheguei a estar hospedado na Pensão Alegria uns 15 dias. Mas senti-me deslocado, muito pequenino ao pé de jogadores como Carlos Pereira, Pinga, Guilhar, Pocas, Novas e, por isso, sem dar cavaco, meti-me no comboio e voltei para Lisboa.»
Como Scopelli lhe tinha dito que aparecesse pelas Salésias, foi. Os gansos tinham uma dívida de gratidão a pagar aos homens da Cruz de Cristo: quando, para a Exposição do Mundo Português, o seu campo do Restelo foi destruído por ordem governamental, o Belenenses colocou-lhes as Salésias à disposição. Por isso, para libertarem Feliciano pediram... três contos. Assinou-se o acordo a uma mesa da Brasileira do Chiado, ficando Feliciano com a garantia de um ordenado mensal de 300 escudos. «Nos meus primeiros tempos no Belenenses arranjaram-me um emprego no Grémio dos Armazenistas de Mercearia. O emprego trouxe-me um pequeno problema: eu não tinha um fato para vestir e não podia, como é evidente, ir para o Grémio fardado com o uniforme da Casa Pia. Valeu-me na emergência Francisco Silva [director do Grémio e do... Sporting]. Ofereceu-me um casaco, uma camisa e uma gravata. Estava salva a situação. Com as calças do fardamento, o enxoval ficou completo»...
O seu primeiro treinador no Belenenses foi Artur José Pereira, que, apercebendo-se de que Feliciano só chutava com o pé esquerdo, o obrigava a jogar apenas com uma bota calçada. Estreou-se contra a Cuf, com uma vitória por 6-0, numa partida histórica em que Horácio Tellechea marcou os seis golos da equipa e, em 1943/44, alcançou o seu título: campeão de Lisboa. Dois anos depois, com o seu célebre oitavo exército, o Belenenses sagrava-se campeão nacional. Era o tempo das Torres de Belém. Vasco, Feliciano e Serafim.
Depois do título foi passar férias à Corunha. Conheceu o mítico Zamora. Que já lhe conhecia a fama. E quis levá-lo para o seu clube. O Celta de Vigo ofereceu 200 contos ao Belenenses pela sua libertação. E mais 200 a Feliciano para assinar contrato... Ganhava 800 escudos por mês. Por amor ao Belenenses não aceitou o convite. Não lhe aumentaram o ordenado, mas deram-lhe, como que por gratidão, cinco contos de luvas!!! Ainda esteve, pouco depois, a caminho do Brasil. Do Vasco da Gama. Mas voltou a não ter coragem de se lançar ao desafio.
«Porque é que o gajo não morreu mesmo?...»
Por essa altura, uma das cenas mais incríveis da sua vida. Por Belém correu o rumor de que tinha sido... assassinado. Assassinado fora, de facto, outro desportista, António Feliciano como ele. Foi José Maria Pedroto quem lhe deu a notícia da sua... morte. Feliciano explorava o bar da delegação do Belenenses na Avenida da Liberdade, onde os jogadores almoçavam ao domingo, antes dos jogos. Foi para o jogo. Contra o Estoril. Já toda a gente em Belém sabia que fora boato. Mesmo assim, quando pisou o relvado das Salésias estrugiram as palmas. O Belenenses ganhava ao Estoril por 1-0. Feliciano tentou fazer um rodriguinho, perdeu a bola para Bravo, o primeiro português a transferir-se para Espanha, que marcou o golo do empate. «Os sócios da superior desataram aos berros e eu ouvi, distintamente, os fulanos dizerem: porque é que este gajo não morreu mesmo?»
A santa e o beijo da francesa
Quando se estreou na Selecção, o que mais estranhou foi ver os jogadores mais cotados, os ídolos com quem poderia, enfim, privar como par entre pares, a dizerem, amiúde, que estava na hora de irem lavar os dentes. Era a senha secreta para fugirem ao controlo do seleccionador e irem jogar cartas pela noite dentro. Foi na Corunha que fez o seu debute com a camisola das quinas. «Fomos num autocarro especial, como a deslocação maçava e podia dar lugar ao adormecimento dos músculos, apeávamo-nos de vez em quando e fazíamos um pouco de footing com sprints intervalados, à borda da estrada.» Nesse jogo competir-lhe-ia marcar Zarra. Um monstro. Peyroteo casara havia pouco tempo. Tivera permissão para levar a mulher com ele. Em jeito de... lua-de-mel. Pouco antes do jogo a senhora abeirou-se de Feliciano e deu-lhe uma santinha. Para que tivesse sorte. «Fiquei comovido. E nunca mais me separei da santinha. Joguei com ela na algibeira do calção. Saí-me tão bem que o dr. Tavares da Silva se agarrou a mim a chorar.» A santa jamais largaria. Ficou sua mascote.
Não muito depois, na vitória de Portugal sobre a França, por 2-1, foi considerado o melhor defesa da Europa e nunca mais se esqueceu da jornalista francesa que lhe pregou um quente beijo como sinal de admiração!
Burilador Títulos
Em 1949 tinha Feliciano 32 anos. Não caíra nas boas graças de Fernando Riera e como se se sentisse peça de armazém, que era o que não queria ser, jogador mimado e hipersensível, abandonou o Belenenses. Foi para o Marinhense como jogador-treinador, subiu o clube dos Distritais à II Divisão, passou pelo Beja, pelo Chaves, pelo Famalicão e pelo Riopele. Em 1965 mudou de rota. Casara com uma espanhola de Orense, passava férias em Portimão. Recebeu uma chamada numa... praça de táxis. Era Afonso Pinto de Magalhães, presidente do F. C. Porto, a convidá-lo para treinador das camadas jovens da equipa. Aceitou de imediato. Construiu gerações de ouro, a escola Feliciano: Fernando Gomes, João Pinto, Jaime Magalhães, Zé Beto, Rui Filipe, Domingos, Vítor Baía... No F. C. Porto subiria a treinador principal, em 1971/72, substituindo o brasileiro Paulo Amaral. E dois anos depois desceria a adjunto de Riera, o homem que o arrumara no Belenenses. Não muito depois voltou a ser o que mais prazer lhe dava: burilador de diamantes...
Numa casita modesta da Rua do Outeiro, na cidade da Covilhã, lá em cima, junto dos picos da serra da Estrela, nasceu António Feliciano. O pai era tintureiro de fazendas e a mãe tecedeira. Órfão ficou aos seis anos. A mãe, com quatro filhos para criar, conseguiu que António entrasse na Casa Pia. O futebol era o seu fascínio, a única paixão da sua vida. Aos 17 anos inscreveram-no, oficialmente, no Casa Pia Atlético Clube. Davam-lhe o dinheiro para os eléctricos, mas mesmo que os jogos fossem nas Amoreiras ou no Campo Grande ia a pé, para ficar com os 16 ou 24 tostões para a borga. Começou por ser médio-esquerdo, mas depressa se fixou como defesa. O seu primeiro treinador foi o jornalista Ricardo Ornelas, que nem sequer imaginava que, por vezes, Feliciano jogava clandestinamente no... Hotel Borges. Eram renhidos os jogos entre hotéis de Lisboa, os mais argutos iam à Casa Pia aliciar os jovens que começavam a despontar, oferecendo-lhes, em caso de vitória nos campeonatos, prémios de 20 escudos ou... cinco maços de Paris. Era um luxo. «Quando regressava a Belém era um rei.»
Depressa passou para a equipa de honra do Casa Pia. Deu nas vistas e o Benfica interessou-se. Nessa altura já jogava como terceiro-defesa. E foi num jogo com o Benfica, para a Taça de Portugal, nas Salésias, que o seu destino ficou marcado. Alejandro Scopelli assistiu à partida e ficou deslumbrado com o defesa-central. Era o homem que procurava para substituir Tarrio. Mas, através de Miguel Siska, do Porto, outro canto de sereia. «Cheguei a estar hospedado na Pensão Alegria uns 15 dias. Mas senti-me deslocado, muito pequenino ao pé de jogadores como Carlos Pereira, Pinga, Guilhar, Pocas, Novas e, por isso, sem dar cavaco, meti-me no comboio e voltei para Lisboa.»
Como Scopelli lhe tinha dito que aparecesse pelas Salésias, foi. Os gansos tinham uma dívida de gratidão a pagar aos homens da Cruz de Cristo: quando, para a Exposição do Mundo Português, o seu campo do Restelo foi destruído por ordem governamental, o Belenenses colocou-lhes as Salésias à disposição. Por isso, para libertarem Feliciano pediram... três contos. Assinou-se o acordo a uma mesa da Brasileira do Chiado, ficando Feliciano com a garantia de um ordenado mensal de 300 escudos. «Nos meus primeiros tempos no Belenenses arranjaram-me um emprego no Grémio dos Armazenistas de Mercearia. O emprego trouxe-me um pequeno problema: eu não tinha um fato para vestir e não podia, como é evidente, ir para o Grémio fardado com o uniforme da Casa Pia. Valeu-me na emergência Francisco Silva [director do Grémio e do... Sporting]. Ofereceu-me um casaco, uma camisa e uma gravata. Estava salva a situação. Com as calças do fardamento, o enxoval ficou completo»...
O seu primeiro treinador no Belenenses foi Artur José Pereira, que, apercebendo-se de que Feliciano só chutava com o pé esquerdo, o obrigava a jogar apenas com uma bota calçada. Estreou-se contra a Cuf, com uma vitória por 6-0, numa partida histórica em que Horácio Tellechea marcou os seis golos da equipa e, em 1943/44, alcançou o seu título: campeão de Lisboa. Dois anos depois, com o seu célebre oitavo exército, o Belenenses sagrava-se campeão nacional. Era o tempo das Torres de Belém. Vasco, Feliciano e Serafim.
Depois do título foi passar férias à Corunha. Conheceu o mítico Zamora. Que já lhe conhecia a fama. E quis levá-lo para o seu clube. O Celta de Vigo ofereceu 200 contos ao Belenenses pela sua libertação. E mais 200 a Feliciano para assinar contrato... Ganhava 800 escudos por mês. Por amor ao Belenenses não aceitou o convite. Não lhe aumentaram o ordenado, mas deram-lhe, como que por gratidão, cinco contos de luvas!!! Ainda esteve, pouco depois, a caminho do Brasil. Do Vasco da Gama. Mas voltou a não ter coragem de se lançar ao desafio.
«Porque é que o gajo não morreu mesmo?...»
Por essa altura, uma das cenas mais incríveis da sua vida. Por Belém correu o rumor de que tinha sido... assassinado. Assassinado fora, de facto, outro desportista, António Feliciano como ele. Foi José Maria Pedroto quem lhe deu a notícia da sua... morte. Feliciano explorava o bar da delegação do Belenenses na Avenida da Liberdade, onde os jogadores almoçavam ao domingo, antes dos jogos. Foi para o jogo. Contra o Estoril. Já toda a gente em Belém sabia que fora boato. Mesmo assim, quando pisou o relvado das Salésias estrugiram as palmas. O Belenenses ganhava ao Estoril por 1-0. Feliciano tentou fazer um rodriguinho, perdeu a bola para Bravo, o primeiro português a transferir-se para Espanha, que marcou o golo do empate. «Os sócios da superior desataram aos berros e eu ouvi, distintamente, os fulanos dizerem: porque é que este gajo não morreu mesmo?»
A santa e o beijo da francesa
Quando se estreou na Selecção, o que mais estranhou foi ver os jogadores mais cotados, os ídolos com quem poderia, enfim, privar como par entre pares, a dizerem, amiúde, que estava na hora de irem lavar os dentes. Era a senha secreta para fugirem ao controlo do seleccionador e irem jogar cartas pela noite dentro. Foi na Corunha que fez o seu debute com a camisola das quinas. «Fomos num autocarro especial, como a deslocação maçava e podia dar lugar ao adormecimento dos músculos, apeávamo-nos de vez em quando e fazíamos um pouco de footing com sprints intervalados, à borda da estrada.» Nesse jogo competir-lhe-ia marcar Zarra. Um monstro. Peyroteo casara havia pouco tempo. Tivera permissão para levar a mulher com ele. Em jeito de... lua-de-mel. Pouco antes do jogo a senhora abeirou-se de Feliciano e deu-lhe uma santinha. Para que tivesse sorte. «Fiquei comovido. E nunca mais me separei da santinha. Joguei com ela na algibeira do calção. Saí-me tão bem que o dr. Tavares da Silva se agarrou a mim a chorar.» A santa jamais largaria. Ficou sua mascote.
Não muito depois, na vitória de Portugal sobre a França, por 2-1, foi considerado o melhor defesa da Europa e nunca mais se esqueceu da jornalista francesa que lhe pregou um quente beijo como sinal de admiração!
Burilador Títulos
Em 1949 tinha Feliciano 32 anos. Não caíra nas boas graças de Fernando Riera e como se se sentisse peça de armazém, que era o que não queria ser, jogador mimado e hipersensível, abandonou o Belenenses. Foi para o Marinhense como jogador-treinador, subiu o clube dos Distritais à II Divisão, passou pelo Beja, pelo Chaves, pelo Famalicão e pelo Riopele. Em 1965 mudou de rota. Casara com uma espanhola de Orense, passava férias em Portimão. Recebeu uma chamada numa... praça de táxis. Era Afonso Pinto de Magalhães, presidente do F. C. Porto, a convidá-lo para treinador das camadas jovens da equipa. Aceitou de imediato. Construiu gerações de ouro, a escola Feliciano: Fernando Gomes, João Pinto, Jaime Magalhães, Zé Beto, Rui Filipe, Domingos, Vítor Baía... No F. C. Porto subiria a treinador principal, em 1971/72, substituindo o brasileiro Paulo Amaral. E dois anos depois desceria a adjunto de Riera, o homem que o arrumara no Belenenses. Não muito depois voltou a ser o que mais prazer lhe dava: burilador de diamantes...