Em 2001, um conjunto de ataques terroristas coordenados abalou os E.U.A. e o mundo. Uma nova forma de terrorismo - face ao conceito mais tradicional que incluía, essencialmente, alvos ideológicos simbólicos e danos civis como meros colaterais - foi, infelizmente, inaugurada. Este novo terrorismo elege os civis - quaisquer civis - como alvos preferenciais, escolhendo métodos que potenciam a perda de vidas humanas. É um terrorismo menos estratégico e mais de retaliação face ao tradicional, e pretende, acima de tudo, garantir a maior perda de vidas civis possível em cada ataque, face ao objetivo final: destruir símbolos de segurança e de civilização (da civilização ocidental industrializada).
Em nome deste terrorismo que mata gratuitamente, medidas excecionais, que seriam proibidas pelas constituições europeias, foram sendo aprovadas por estes mesmos países europeus. Em nome deste terrorismo. Por exemplo, em 2001, precisamente no rescaldo do 11/9, foram previstas exceções à proibição constitucional de realização de buscas noturnas para casos de terrorismo (e criminalidade altamente organizada, violenta e tráfico).
No dia 13/11/15, esta nova forma de terrorismo invadiu paris, com ataques concertados que vitimaram - com maior concentração no Bataclan - mais de 180 pessoas.
Passados 3 anos, fala-se de terrorismo a propósito de um ataque ocasional, motivado por razões pessoais e circunstanciais, enquadrado num contexto que não é ideológico, nem pretende destruir qualquer símbolo civilizacional ou avançar uma qualquer agenda social ou politica. Fala-se de terrorismo a propósito de um conjunto de homens de uma claque de futebol que, sentindo-se empoderados pela apatia ou conivência da direção do clube que, supostamente, deveriam proteger, decidiram intimidar um conjunto de pessoas determinadas, recorrendo a cintos e às mãos.
No dia 11/11/18, assistimos a uma fraude constitucional sem precedentes na história da democracia portuguesa. Alegando estar a lutar-se contra o terrorismo, e invocando mecanismos excecionais que apenas foram admitidos constitucionalmente para lutar contra crimes excecionais, o Ministério Público determinou que a polícia entrasse na casa de um suspeito para o deter e realizar buscas durante a noite. Não havia perigo para a segurança pública. Não havia perigo para a vida ou a integridade física grave de ninguém. Não havia um risco imediato de fuga. Tratava-se de um suspeito que já se tinha, aliás, voluntariado para colaborar com a investigação.
O que se passou na academia do Sporting não foi terrorismo. Não tem qualquer semelhança com qualquer fenómeno histórico que tenha servido de caracterização do terrorismo. Foi violento, foi assustador, foi grave. Como todos os crimes violentos são. Existem vários tipos criminais que se podem aplicar a este caso, desde a participação em motim (e não a rixa, foi lapso meu), à ofensa à integridade física qualificada. Qualquer um dos tipos chega para expressar a gravidade do caso. Tentar exagerar artificialmente a gravidade de um crime perante a sociedade - para gerar maior alarme social e assustar a população - fazendo acusações insufladas de crimes que não existiram é perigoso e contraproducente.
É perigoso, pois banaliza a criminalidade grave na perceção pública, dessensibilizando e gerando um efeito contrário na sociedade (é mais provável que se torne mais violenta).
É contraproducente, pois embora crie uma falsa perceção de grande eficácia da investigação - durante 5 minutos - irá inevitavelmente conduzir a uma enorme frustração de expectativas sociais. Estas acusações são insustentáveis em julgamento - e ainda bem, pois não se pode condenar alguém apenas para satisfazer a sede de sangue e vingança estimulada por uma certa forma de noticiar o crime - e conduzem a condenações modestas face à quantidade e qualidade dos crimes que imputavam aos arguidos. O desfasamento gera uma perceção na sociedade - falsa - de que a justiça não funciona, de que os tribunais não funcionam.
E voltamos ao perigo: há poucas coisas mais perigosas do que uma sociedade que deixou de acreditar nos seus tribunais.
O simplismo não está na convicção e explicação de que o tipo de terrorismo não está preenchido - no seu sentido de ilícito típico - neste caso, atendendo à sua natureza histórica, sociológica, jurídica. O simplismo está em dizer que quando se aterroriza alguém, se pratica o crime de terrorismo. O simplismo está em dizer que existe crime de terrorismo porque se preenche a letra da lei, porque cabe no seu sentido literal. Não é assim que se lê e interpreta o Direito Penal (e isto aprende-se no 3.º ano da Faculdade de Direito).
Não deixemos que a ânsia de notícias com potencial chocante dirija a interpretação e aplicação do Direito Penal. Não deixemos que a ânsia de protagonismo conduza a forma como refletimos sobre uma criminalidade que é séria, grave e preocupante, mas que, felizmente, nos mantém longe do que é, verdadeiramente, o horror do terrorismo.
Fiquemos antes felizes de não termos terrorismo sério em Portugal. De termos uma polícia eficaz que rapidamente identificou e deteve os suspeitos, neutralizando o seu potencial violento e acalmando uma situação complexa e delicada. De termos uma investigação eficaz que em poucos meses desmontou um puzzle intrincado e conseguiu deduzir acusação num caso exigente. Aguardemos calmamente a realização de justiça, sem histeria, sem excessos, sem absurdos e sem violações flagrantes da constituição. Pois não há realização da justiça sem realização da Constituição.