Não estamos preparados para a guerra
Henrique Burnay
Como é que as democracias resistem à crise económica provocada por uma guerra que não estamos preparados para combater nem, eventualmente, disponíveis?
Os 60 anos de paz na Europa criaram várias ilusões e algumas expectativas que se tornaram em maus hábitos.
Para começar, a ideia de paz europeia é equívoca. Houve paz, mas havia guerra na Europa. Não havia tiros nem trincheiras, mas desde 1946 que a Europa estava dividida. De um lado, vivia-se em paz e prosperidade, do outro vivia-se sob ocupação ou domínio soviético e sem progresso económico comparável ao ocidental. E também havia quem vivesse em ditadura, do lado de cá.
A paz europeia não foi uma paz na Europa, foi uma paz entre os membros da Comunidade Europeia. E o que garantiu que a guerra que havia na Europa era apenas fria foi a NATO, não foi a CEE. Isto importa, porque importa não pensar que o conforto e segurança em que vivíamos era o conforto e segurança de todos. E, também, para não nos enganarmos quanto ao que a União Europeia sabe fazer.
O outro equívoco desta longa paz foi pensar que não seria necessário combater nem sofrer os custos da guerra. Para assegurar o seu lugar de potência, os americanos mantinham exércitos, garantiam a segurança da Europa e, de tempos a tempos, iam à guerra. Nós, não.
Durante décadas, habituámo-nos a não pagar o preço da guerra. Nem em homens, nem em armas, nem em contas da mercearia. Nunca nos faltou nada do que tinha faltado aos nossos pais, avós e bisavós durante as grandes guerras. A nossa forma de resistência ao comunismo foi viver confortável e prosperamente. Foi bom. Mas convencemo-nos de que seria normal ser assim. Habituámo-nos.
Por mais críticas, espanto e incómodo que alguns europeus de Leste nos provoquem, há uma lição que nos podem dar todos os dias. Durante mais de 40 anos, eles resistiram. Maioritariamente sozinhos.
São essas lições da História que agora regressam.
A reação dos bálticos, dos polacos e de outros europeus do Centro e Leste do continente à invasão russa da Ucrânia é, acima de tudo, uma questão de identificação. Eles sabem que podiam ser eles. E recordam - os mais velhos lembram-se mesmo - o que implicou resistir e sobreviver ao comunismo soviético e ao imperialismo russo.
Os europeus do centro e leste do continente sabem que há um preço a pagar pela liberdade (democracia) e soberania. A maioria dos europeus ocidentais, não sabe porque já não se lembra. É aqui que as águas se podem separar nos próximos meses.
Até agora não foi nada. Apesar da inflação, da ameaça concretizada da subida das taxas de juro (para quem tem dívidas) e do que se diz sobre a energia, o pouco que se sentiu foi disfarçado pelas alegrias do regresso à normalidade.
Acabados de sair de confinamentos e de números de mortos a rolar diariamente nas televisões, ainda é cedo para notar que a cerveja está mais cara. Por enquanto, a novidade é voltar aos bares e restaurantes para bebê-la. Por maior que seja o anúncio do desastre iminente, ainda estamos a celebrar o fim definitivo (confiamos) daqueles meses enfiados em casa, angustiados. Não nos interrompam a festa.
Desde o primeiro dia de guerra que se sabia que haveria um preço a pagar pela resistência. Os ucranianos, pagam com a vida a possibilidade de serem livres. Nós, pagaremos com a economia. A inflação, as dívidas mais caras, o racionamento de energia, o atrasar do crescimento económico. Nos próximos meses, pela primeira vez em décadas para mais de metade dos europeus, não estaremos na guerra, não estaremos invadidos nem ocupados, mas viveremos as consequências da guerra. E as consequências das consequências da guerra.
Em França, não há uma maioria parlamentar que defenda o governo quando as coisas estiverem difíceis. E há uma quase maioria (desunida) que não só deseja o fim do regime, como intimamente deseja a vitória russa. Em Itália, o governo (e o regime?) depende de um partido anti-sistema. O que é eloquente. Na Alemanha, o problema não é a alternativa, não é a extrema, nem direita nem esquerda, que espreita, é a própria Alemanha. A que não vê razões para expulsar o vendido Schroder do partido social democrata a que presidiu. Eventualmente porque não reconhece a traição. E, mesmo que não venha de Berlim a desistência, França, Itália e o euro em perigo são sarilhos mais que suficientes.
Nos próximos tempos, vai ser impossível evitar as consequências da guerra. E quase impossível evitar as consequências das consequências da guerra. Sendo a mais perigosa de todas a queda de governos às mãos de populistas, radicais e anti-democráticos sentados nos parlamentos.
Se a experiência americana de Trump nos ensinou alguma coisa, foi que são necessárias instituições fortes e poderes dispersos para resistir a um populista. A América tem umas e outros. Já na Europa continental, como recorda a História, França pode facilmente colaborar em vez de resistir, e Itália pode se fascinar com um líder improvável de opereta.
Para os próximos meses há três perguntas que vão determinar o nosso futuro próximo. Como se diminuem ou contrariam os impactos da guerra na economia? Como se diz aos cidadãos que alguns impactos são inevitáveis e necessários, porque a guerra é justa e nossa? Como se impede a queda dos governos e das democracias?
Dito de outra forma, como é que as democracias resistem à crise económica provocada por uma guerra que não estamos preparados para combater nem, eventualmente, disponíveis?
Os manuais de História da Europa continental não têm muitas instruções. É essa falha que a União Europeia precisa de compensar. Será capaz? Este pode ser o tempo da Europa. Ou a sua submissão.