Memórias do século XX

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Adriano Pinto

A história das últimas décadas do futebol português passa, inevitavelmente, por Adriano Pinto. Com 60 anos de idade, leva 20 de ininterrupta presidência da Associação de Futebol do Porto – ficaram famosas algumas das suas batalhas nas assembleias-gerais federativas.
Não falta quem o responsabilize, para o bem e para o mal, pela actual situação. Adriano Pinto não descarta o protagonismo mas, por obra e graça da Lei de Bases do Sistema Desportivo e, por arrastamento, a atribuição da gestão do futebol profissional à Liga dos clubes, como determina o Regime Jurídico das Federações, prefere dizer que está “numa cadeira, a assistir”.
Famoso por ter dito que dava “xitos” aos seus adversários no conclave federativo, é na AF Porto que Adriano Pinto desvenda algumas das suas memórias. Notando-se, pontualmente, uma reserva legítima por estar ainda longe da reforma, o depoimento de Adriano Pinto não deixa de ajudar a compreender alguns dos aspectos marcantes do futebol português nos últimos anos do século XX. E como há quem já não se lembre da rotatividade BSB para presidência da FPF!

“Dei, de facto, alguns xitos”
Adriano Pinto é presidente da Associação de Futebol do Porto há exactamente 20anos e é, seguramente, um dos “dinossauros” do dirigismo desportivo português. Natural de Castelo de Paiva, onde nasceu a 15 de Setembro de 1939, é dos nomes sempre em foco quando se fala da organização do futebol, ainda que o seu protagonismo esteja hoje menos mediatizado por obra e graça da entrega do futebol profissional à Liga dos Clubes após uma modificação, organizacional, em que travou duras batalhas.
Nas últimas duas décadas gerou amizades e inimizades em quantidades próprias de quem não se limita a estar sentado num cadeirão
O presidente da AF Porto, entre muitas histórias que o envolveram, ficou célebre por nas Assembleias Gerais da Federação, nas batalhas travadas, ter dado aos seus adversários o que ficou conhecido por “xitos”. Os episódios ainda não estão envoltos pela poeira do tempo, longe disso, mas é com um sorriso estampado no rosto que Adriano Pinto recorda esses episódios procurando um perfil… pedagógico para os justificar. “Sou natural, com muita honra, de Castelo de Paiva, onde os mais velhos têm o hábito de jogar à “sueca”, dando o nome de “xito” a uma vitória de quatro jogos a zero. É claro que nas Assembleias Gerais da Federação havia muitas guerras, há uns anos, e como não estamos habituados a perder, várias vezes ganhamos tendo eu utilizado o termo “xito” com toda a propriedade. Admito hoje que dei, de facto, alguns “xitos”, mas isso faz parte de um passado não tão distante assim”.
A “sueca”, o xito, a conclusão do presidente da AF Porto:
“As coisas mudaram nos últimos anos e, agora, tenho estado sentado numa cadeira a ver todo o panorama, o qual não regista grandes avanços. A vida dos clubes é hoje mais difícil, vivendo com o cutelo permanente dos impostos por pagar uma vez que o Governo – ao contrário do que sucedeu em Espanha há uns anos – não partiu para uma nova solução, limpando os passivos. Vivemos agora num tempo de paliativos, como consequência de situações resolvidas à pressão. Publicou-se legislação sem nexo e a situação de muitos clubes é negra”.
Seja. Mas a matéria só faz sentido numa extensão de “memórias”. E a verdade, irrebatível, é que se vai clamando, por vezes se calhar demasiadas, contra o que alguns designam de “sistema”. “Sistema” que é algo dito de forma pouco concreta mas pejorativa – e Adriano Pinto é visto como parte de um “sistema” que implantou. Verdade ou mentira? O carismático presidente da associação portuense, hoje com mais de 370 clubes inscritos, contra os 213 que tinha quando tomou posse, oriundo do dirigismo do Ramaldense – tem uma resposta no mínimo… arrasadora: “Sistema? Conheço apenas uma empresa de computadores com esse nome”. E mais: “Que responsabilidades temos nós no sistema se temos um vogal no Conselho de Arbitragem da FPF e até nos pediram para presidir a esse órgão?”.
Recorda-se a Adriano Pinto que a história não pode ser apagada e que ficou célebre a sua escolha, vezes sem conta, do cargo de presidente da Arbitragem, em vez do de presidente da Direcção da Federação. Para ser controleiro? – Pergunta-se-lhe, para uma resposta lapidar: “A Associação fez sempre o que os seus clubes filiados lhe pediram. Tínhamos o maior número de clubes na I Divisão e é natural que víssemos satisfeitos alguns desejos. Mas – revela – há uma coisa que é preciso não esquecer: entendemos sempre que o presidente da Federação tem de trabalhar todos os dias, arduamente, e não uma vez por semana. Como gostamos de dar conta das missões em que nos empenhamos é natural que não quiséssemos o cargo para um elemento indicado pela AF Porto. É preciso fazerem-se análises correctas e que cada um saiba assumir as suas responsabilidades. Mais: desafio quem quer que seja a indicar um só árbitro que por mim tenha sido influenciado para isto ou para aquilo”.

BSB
A memória de muitos já lá não chega, mas Adriano Pinto foi um dos intérpretes de algo que durante muitos anos impregnou a vivência do futebol nacional: a rotatividade BSB (Benfica, Sporting e Belenenses), na presidência da Federação. Hoje, ao recordar o fim desse regime, no princípio da década de 80, o presidente da AF Porto admite “ter sido o responsável por lhe ter posto cobro”. E embora se feche em copas – não em “xito” – sobre a influência que terá exercido nos bastidores, prefere dizer que o fim da rotatividade se deveu a “trabalho”. Trabalho? “Pois, dizendo às pessoas que não era correcto o que vigorava. Mudar custou-me uma guerra terrível. Houve necessidade de “converter” algumas associações que até nem tinham direito a nenhum lugar na estrutura federativa. Fomos conversando e… deu-se a viragem”, conclui, como se tivesse sido simples.
As batalhas, como o admitiu, foram duras, num homem sem sono, hoje com uma Pós-Graduação em Direito Desportivo (Universidade Lusíada) e uma Licenciatura em Administração (ISCE). Mesmo assim, quando se lhe pede a indicação de “adversários” que tenham sido mais temíveis na sua experiência de dirigente, joga à defesa dizendo que gosta de “lutar para melhorar as coisas – mas nunca tive problemas com ninguém em termos pessoais”. O que não quer dizer que não “não haja quem não goste de mim mas por uma questão de inveja”. Nomes? “Não é ainda altura. No momento próprio ponho nomes e junto fotocópias dos jornais das épocas a que as coisas se reportam. Compreendam-me: presido a uma associação de futebol e não posso estar com problemas escusados. Mas fica uma certeza: nunca ganhei cinco tostões com o futebol”
A estratégia ultra defensiva não evita uma mudança de sentido quando se lhe recorda que o futebol profissional está hoje entregue à Liga dos Clubes e que, por isso, as associações perderam influência. Adriano Pinto não concorda com a tese. Porque “ a Associação de Futebol do Porto está representada em todos os órgãos da Federação – a AF Lisboa, por exemplo, não está. O que se passa é que há quem prefira andar sempre em bicos de pés, mesmo quando não têm razões para isso. Nós não; preferimos estar quietinhos, sentados numa cadeira, a ver como é que isto vai acabar.
Uma posição respeitável de alguém que foi agraciado, em 1979, com a Medalha de Bons Serviços Desportivos do Governo, é Medalha de Ouro ao Mérito da FPF, Medalha de Ouro de Valor Desportivo da Câmara Municipal do Porto, sócio honorário e de mérito de diversos clubes, presidente da Assembleia Municipal de Lousada, pelo PSD, membro da Comissão de Jovens da UEFA, da Assembleia Geral do Comité Europeu de Profissões Jurídicas, enfim… tem um currículo extensíssimo e consegue conciliar todas as suas actividades extra-profissionais com a de Técnico de Contas e Consultor Fiscal. Sobrar-lhe-à tempo para um dia escrever as suas memórias?

SEGREDOS

Relator do Conselho de Justiça esqueceu-se do dia de S. João
Remete para as memórias a escrever um dia os episódios que, pela sua natureza, pertencem ainda aos arquivos cerebrais, numa espécie de casulo ao tipo de Torre do Tombo. Mesmo assim – e quantas histórias ele um dia poderá pôr cá fora! -, Adriano Pinto, desafiado a desvendar “mistérios” não resistiu a contar um passado, há anos, na AF Porto.
Há umas épocas, o Oliveira do Douro atingiu a possibilidade de subida à III Divisão Nacional mas, por filosofia da FPF, foi preterido. Com o meu espírito de colaborar e de ajudar um filiado – como um sindicato presta apoio a um seu associado – preparámos o recurso da decisão para o Conselho de Justiça da Federação. O relator do processo indeferiu liminarmente o recurso alegando ter sido apresentado um dia fora do prazo. Aí, meti-me no avião, fui a a Lisboa, e fui dizendo que havia um engano. Argumento daqui, argumento dali, afinal eu tinha razão porque não se lembrara o relator que na contagem dos dias previstos tinha de ter em conta o Dia de S. João, feriado no Porto”.
Adriano Pinto esboça um sorriso e explica o que se seguiu: “O recurso foi aceite para apreciação mas, em pleno plenário, acabou por ser indeferido. E o curioso é que o Oliveira do Douro pediu, depois, uma indemnização à Associação por a FPF não ter aceite o seu pedido. Claro que a acção foi posta em sede diferente da que devia ser…”

Roberto Carneiro e as traições à Lei de Bases
A passagem de Adriano Pinto pela AR como deputado do PSD durou seis anos (um mandato e meio). Admite, hoje, que a “experiência no dirigismo desportivo foi muito útil” e acaba por revelar um episódio passado com o então ministro da Educação, Roberto Carneiro.
“Fui presidente da Sub-Comissão Parlamentar de Educação Física e Desporto e estive na feitura da Lei de Bases do Sistema Desportivo, em 89, 90. Funcionava como um elo de ligação a Roberto Carneiro, para articular a legislação, e representava o PSD, juntamente com Gilberto Madaíl [actual presidente da FPF]. Reunimo-nos algumas vezes e havia alterações previstas que iam no sentido da destruição pura e simples das associações. A certa altura – conta Adriano Pinto – dirigi-me ao ministro Roberto Carneiro e disse-lhe: “Vou pedir ao grupo parlamentar do meu partido para deixar de exercer estas funções, uma vez que, como presidente de uma associação, com funcionários dedicados e serviços relevantes prestados ao Desporto, não posso pactuar com faltas de seriedade; não posso ser traidor. Roberto Carneiro respondeu-me: “As dificuldades são assim tantas que não se possam concertar posições?” A verdade é que o ministro compreendeu a minha atitude, foram alteradas algumas partes do clausulado e as associações… existem.”

A cozinha e Pinto da Costa
Da fama não se livra. Ao longo dos anos o seu poder foi visto como sustentado numa série de “cozinhados”, em parceria com Pinto da Costa. Pede-se a confissão: fez Adriano Pinto “cozinhados” que hoje possam ser públicos?
“Não sei cozinhar – sei comer. O presidente do FC Porto é um homem cheio de virtudes, que sabe recitar muito bem, encanta plateias, mas não me consta que cozinhe. Levo muitos anos de contacto com ele, em algumas situações de colaboração e ajuda. É um homem de enorme experiência e saber que sempre esteve disponível. É um bom amigo e o melhor dirigente do futebol português”.
Adriano Pinto, decididamente, aceita ter dado “xitos”, muitos “xitos”, mas não revela nenhum dos parceiros que o ajudaram a obtê-los.

E o século XXI?
“As SAD são boas para grandes clubes e muito importantes para o Estado”
O Século XXI não vai ser um mar de rosas para o futebol português, a não ser que se façam inequívocas modificações no regime vigente. É a prestidigitação do presidente da AF Porto – confessado accionista do FC Porto, Futebol, SAD – sem revelar montantes.
“Ou as pessoas se consciencializam do que está mal e fazem rectificações com carácter urgente, salvando-se o Convento, ou dentro de pouco tempo assistiremos ao caos” – afirma, em tom convicto, Adriano Pinto, ao considerar que no futebol “pagam-se ordenados incomportáveis, impostos que não se aguentam, por exemplo. É preciso que quem detém responsabilidades seja capaz de puxar pela cabeça, detectar os males e erradicá-los.
P presidente da AF Porto tem uma visão interessantíssima sobre o fenómeno das sociedades desportivas: “As SAD são boas para grandes clubes e muito importantes para o Estado, uma vez que mais facilmente exerce fiscalização. Os que não constituíram SAD estão, entretanto, aflitíssimos. Há dirigentes que ainda não sabem que respondem com os bens pessoais pelas dividas dos clubes – o Regime Especial de Gestão. No dia em que acabarem os mecenas, ou os carolas, os clubes desaparecem”.
Adriano Pinto acentua haver ainda espaço para arrepiar caminho, recusando o catastrofismo puro e duro, mas visualiza o próximo século como o do “evoluir do profissionalismo em toda a sua extensão, com consequências que podem chegar à realização de um Campeonato da Europa de Clubes”.
Numa rápida “espreitadela”:
“Fala-se agora muito, em Portugal, no reduzir de número de clubes na I Divisão, mas não acredito que haja alguém com coragem para aprovar uma proposta dessas. Todos os fins-de-semana o povo vai ver os jogos de grande interesse, com o Rio Ave, o Salgueiros ou o Braga – e como é que se vão fazer reduções contra as massas associativas? Com que consequências?”.
Afinal, não pode vir a suceder que as equipas B evoluam num sentido tal em que, com um campeonato europeu de clubes, se possa ter, por exemplo, o FC Porto a jogar, ronda a ronda, com o Glasgow Rangers ou a Lázio, o Real Madrid ou o Paris Saint-Germain, e o FC Porto B actue com o Rio Ave, o Amadora ou o Farense?
Adriano Pinto não esboça nenhum sinal de espanto e remata lapidarmente: “Pode acontecer. O FC Porto – Real Madrid, por exemplo, proporciona mais receitas do que todos os jogos do campeonato”. E dá ainda, sobre uma matéria que está muito em voga, a do vínculo a empresários de jovens valores, a sua opinião:
“A legislação de todos os países comunitários condena e proíbe a exploração e utilização de mão-de-obra infantil; ora, quantos jovens, ainda em idade escolar obrigatória, são convidados para transferências, nos seus países ou para terceiros, no fomento de um precoce abandono escolar? É uma situação inqualificável. É urgente reflectir sobre este problema, quando os pais e encarregados de educação também pressionam os jovens atletas, a partir dos 10 anos, para que se desenvolvam como jogadores até chegarem a atletas de eleição – situação ao alcance de pouquíssimos. Há que meditar em todos os atropelos e aliciamentos, também empresariais, aos mais jovens. A actual situação começa a ser intolerável”, diz ainda o presidente da AF Porto.

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Adriano Pinto faleceu a 6 de Junho de 2006, aos 67 anos de idade, vítima de doença prolongada, Adriano da Silva Pinto, era Presidente da Direcção da AF Porto há mais de 25 anos.

A ligação de Adriano Pinto ao dirigismo desportivo e ao futebol, em particular, remonta a 1964, altura em que se tornou Secretário-Adjunto da Direcção do Boavista FC. Seguiram-se passagens por diversas colectividades do distrito do Porto, como o Ramaldense FC e a AD Lousada, até ter chegado, na época 1970/71, à Associação de Futebol do Porto, onde esteve como Vogal da Direcção até 1974/75. A partir de 1975 tornou-se Vice-Presidente da AF Porto, chegando à Presidência do organismo quatro anos após.

Figura proeminente do movimento associativo, os serviços que prestou ao Futebol Português e, em particular, ao futebol distrital do Porto, levou Adriano Pinto a ser convidado para o Conselho Superior do Desporto e para o mesmo órgão em clubes como o Boavista FC e o FC Porto.

Mas a sua acção teve, também, um cunho de estreita colaboração com a FPF e as mais altas instâncias do Futebol Europeu e Mundial. Assim, em 1991 foi nomeado como Presidente do Comité Organizador Local (COL do Porto) para o Campeonato do Mundo da FIFA de Sub-20, que se realizou no nosso País, e em 1996 tornou-se membro da Comissão de Jovens da UEFA, sendo reeleito em 1998 para novo mandato. Em 2000 foi convidado a exercer funções similares na FPF e em Agosto desse mesmo ano entrou para o Painel de Especialista de Futebol Jovem da UEFA. Colaborou, ainda, como membro de ligação local, com a organização do Euro2004 e desempenhou as funções de delegado da UEFA em diversos jogos das fases finais dos Campeonatos Europeus de Jovens e noutras competições.

Em termos cívicos e políticos, Adriano Pinto foi Presidente da Subcomissão Parlamentar de Educação Física e Desporto da Assembleia da República (AR) e membro da Comissão para a Análise da Violência no Desporto do Ministério da Administração Interna. Deputado pelo PSD na AR, foi membro da Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura e do Conselho Técnico do Ministério da Administração Interna para o Policiamento Desportivo.

Publicou dois livros (“O Desporto Escolar e o Desenvolvimento Desportivo” [1995] e “20 Anos ao Serviço do Movimento Associativo” [1996]”, além de muitos outros trabalhos de reflexão.

Entre as inúmeras distinções que recebeu ao longo da sua vida, destacam-se a Medalha de Bons Serviços Desportivos, conferida pelo Governo Português, em 1979, a Medalha do Ouro ao Mérito da FPF (1984), o título de “Cidadão Honorário do Porto”, a Medalha de Mérito Desportivo do Ministério da Educação (1988), tendo sido ainda agraciado pelo Presidente da República, Jorge Sampaio, com a Comenda da Ordem de Mérito.