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No início deste século (XXI), penso que o jornal «OJOGO», trouxe à estampa memórias de várias figuras do desporto nacional e internacional, algumas ligadas ao FC Porto e será sobre estas que este tópico incidirá. Pois bem, passados nove anos sobre essas declarações, é curioso observar o que foi recordado nessa altura e o que entretanto terá mudado.
Vou começar por alguém que faleceu recentemente, um senhor do futebol mundial, que tem um cantinho reservado na história do nosso clube:
Bobby Robson
Viveu aproximadamente 60 anos no futebol, mas não parou de se espantar com o muito que a modalidade sempre teve para evoluir e com a sua capacidade de atrair tecnologias de ponta (só a UEFA é que não vê isso) e dinheiro, muito dinheiro. Bobby Robson, sir Robert Robson, viveu metade do século XX entre bolas de futebol, jogadores, relvados e bancadas, assistiu à quase morte do jogo preferido dos ingleses e à sua ressurreição, correu meio mundo atrás de uma bola, mas as suas memórias do século começam pelo mundo da sua rua, pelos primeiros pontapés que, afirma, deu ainda na barriga da mãe. Claro que todos os bebés dão pontapés no ventre materno, mas os de Bobby estavam destinados a dar brado e a deixar grandes lembranças.
O dinheiro faz girar o Mundo e o mundo de Bobby Robson, ex-praticante de topo da modalidade, ex-seleccionador de Inglaterra, treinador de muitos clubes numa boa mão-cheia de países incluindo Portugal, onde treinou o FC Porto, por quem ganhou os primeiros dois títulos do Penta -, foi o futebol. Viveu-o dentro do campo, no balneário, no banco, na bancada, sentiu-lhe as necessidades e as transformações. Muitas protagonizou-as, o que lhe conferiu toda a autoridade para ser acreditado quando afirmou queO jogo é tão perene quanto o seu amor por ele. Vamos lá, então, a essas lembranças:
Comecei o futebol na barriga da minha mãe
Comecei na rua, no recreio da escola, acho que sou dependente do futebol desde os dez anos, e hoje; a dois meses de completar 50 anos sobre o meu primeiro contrato de profissional, que assinei aos 17 anos, vejo como o jogo sofreu mudanças dramáticas. Mudou, desde logo, de um desporto para uma indústria, que movimenta milhões, que são reinvestidos em infra-estruturas, em jogadores. É incrível o poder financeiro do futebol, sublinha, recordando a singeleza dos equipamentos, das instalações, do pouco que custava juntar onze rapazes de cada lado do campo e dar início a uma partida de futebol.
Literalmente onze, porque Bobby Robson era do tempo em que as regras não permitiam a substituição de jogadores, lesionados ou não. A tremenda evolução das técnicas de reabilitação de lesões, os níveis a que a aptidão física dos jogadores foi elevada, a capacidade atlética envolvida num jogo de futebol, eram outros dos espantos de Robson, que aos 24 anos era um top-player da selecção de Inglaterra, um carro de combate no meio-campo da Rosa.
Ia ser modesto, mas se estás na selecção de Inglaterra eu estive entre 1956 e 1962 é porque és mesmo bom. E naquele trabalho de centrocampista, para além de lutar, puxar, empurrar, fintar, saltar, eu, um jogador de elite, corria, o quê? seis milhas? [9,6 quilómetros]. Hoje, um médio-centro como Roy Keane, corre 10 milhas por jogo. O futebol tem acompanhado a evolução geral os cavalos correm mais, os carros correm mais e o jogador actual é também uma máquina impressionante de aptidão atlética. A que a ciência veio dar uma ajuda incomensurável. No meu tempo, um menisco podia custar uma carreira, agora temos três semanas de estaleiro e de volta ao jogo. O Jorge Costa? Há 50 anos, aquelas operações ao joelho teriam acabado com ele. Os avanços médicos aplicados no futebol são uma coisa maravilhosa que ajudam a modalidade a ser cada vez mais uma actividade de ponta.
Robson não liga explicitamente uma coisa à outra, mas percebe-se, no modo como o seu discurso se articula, que há muito de protecção do investimento nesta ligação entre o contributo científico captado para o futebol e o preço exorbitante dos artistas da actualidade. Com graça, o ex-treinador do FC Porto lamenta-se por não ter inscrito no seu contrato com Barcelona, luvas de dez por cento no negócio de transferência de Ronaldo «O Fenómeno». Levei-o para o Barça por 20 milhões de dólares e o clube vendeu-o por 32 milhões no final da época. Digam-me que outro negócio garante uma tão grande margem de lucro em tão pouco tempo? Hoje, os salários são uma coisa do outro mundo, mas quando pensamos no que ganham, por exemplo, as televisões com as transmissões dos jogos, percebemos que tem de ser mesmo assim.
E onde é que isto vai parar? Robson não duvida por um momento que redundará em cada vez mais e melhor futebol. Pensava-se que a televisão iria matar o futebol, e vemos como é mentira. Em Newcastle, temos o campo cheio de gente que acaba de ver o nosso jogo e vai para casa ligar a Sky para ver mais. A televisão tornou o futebol mais popular, mais atrente, mais universal.
O amor dos ingleses ao futebol resgatou-o ao futebol
Deste percurso vertiginoso pela modalidade que o apaixona há meio século, Robson realça nas suas memórias, alguns momentos negros que o atingiram, até pessoalmente. Em Inglaterra, corremos o risco de acabar com o futebol. O hooliganismo, que por muito tempo, demasiado tempo, as autoridades subestimaram, ia matando o futebol, e só a intervenção do Governo e das polícias tornou possível o seu resgate. Era seleccionador nacional na altura e não posso esquecer que estivemos banidos da Europa cinco anos. Mas o futebol é o nosso jogo nacional, não é o críquete ou o Râguebi, não! Os ingleses inventaram o futebol. Fomos mestres, mas percebemos que estava na hora de sermos alunos. E foi o amor dos ingleses ao futebol que o ressuscitou. Conhece os campos ingleses da actualidade? Um regalo: bons relvados, belos estádios, fantástico ambiente, segurança. É o que vocês precisam aqui em Portugal. É o que o Euro2004 vos pode dar.
De rajada, Robson enumera outras memórias que ajudaram o futebol a ser O jogo. O passe para trás, para o guarda-redes: acabou, e o futebol ganhou com isso. Os três pontos por vitória. O que eu pugnei por isso e o bem que isso fez ao futebol. O fora-de-jogo de posição: acabou, e que belos golos nasceram para o futebol. Olhem, o do Jardel, frente ao Molde (26/10/1999) Seria impossível se essa regra ainda existisse. Acho que agora só falta melhorar a questão dos cartões amarelos. Acabar com aquilo que nós chamamos os jogos confeti. O futebol não é um desporto violento, os jogadores de futebol não são pessoas violentas. Então, siga, O jogo.
Lei, Ordem, Paz e Futebol
Homem preocupado com O jogo, Bobby Robson preconiza que o século XXI continuará a ser o século do futebol. É barato, toda a gente o pode praticar, basta uma bola e um pouquinho de espaço. Em África nem de botas precisam. Acho mesmo que enquanto houver oxigénio haverá futebol, e cada vez mais apreciado e praticado, em todo o Mundo.
Mudanças no jogo, Robson antevê desde logo uma, relacionada com o golo. É preciso que, de uma vez por todas, se acabe com dúvida em torno desse momento crucial no jogo. Não tarda muito que introduzam no campo a tecnologia necessária. Ela existe por exemplo no críquete é só utilizá-la. Não concordo com o uso de meios auxiliares para outras situações que ocorrem no campo. A falta, o fora-de-jogo OK, o árbitro ode errar, é um dos muitos factores de erro do futebol, onde toda a gente erra. Mas golo é golo e colocar ao serviço do golo a tecnologia é uma boa causa para a próxima década.
Mudanças exige-as em muitos outros campos da vida da humanidade. Racismo é para acabar: Somos um mundo de pretos e de brancos e temos que aprender a viver uns com os outros. Porque os velhos valores devem prevalecer sobre todos as ameaças, diz Robson. Lei, ordem e paz são essenciais à protecção da nossa sociedade. Temos por garantido que toda a gente come as duas refeições por dia a que tem direito, mas continua a haver muita, demasiada fome e guerras no Mundo. O crescimento da população é um problema grave que a nossa sociedade enfrentará cada vez com maior acuidade no futuro, e aí só há uma forma de actuar, que é a educação.
Tão íntima dos britânicos como os bons e abundantes relvados, a palavra democracia aflora por diversas vezes o discurso deste homem do futebol que costuma ser avesso a politica.
Viver é muito bom e há muita gente que não tem tempo para viver. O Mundo é um lugar muito grande e é tarefa de todos fazer com que o nosso planeta seja um bom lugar para se viver bem. No meu mundo, por exemplo, não há drogas, é um fenómeno que me é exterior, na família, no bairro, na rua, entre amigos, mas a droga é como uma guerra, ou não faz também muitas vítimas e provoca enorme dor no Mundo? Esse é um bom desafio para o próximo milénio. Temos que tomar conta do nosso mundo.
O rato Mickey de Romário no quadro das tácticas
Talentos conheceu Bobby Robson um pouco por todo o mundo e do discurso do inglês percebe-se a admiração desmesurada que sente pró Ronaldo «O Fenómeno». Mas uma história saborosa dos tempos em que treinou e levou a campeão o PSV, tem por protagonista o outro Ro da famosa dupla de avançados do Brasil. Romário, que foi jogador de Robson na sua passagem pela Holanda, acabara de mostrar os dois lados da sua personalidade, fazendo um primeiro jogo de sonho e um outro que só faltou ter jogado a dormir e com as mãos nos bolsos. No reencontro com o plantel após a folga, Robson usou o quadro Basculante das tácticas que pontifica em qualquer balneário para expressar a sua opinião sobre o tema: numa das faces desenhou Pelé e o que eu me esforcei para que o desenho ficasse parecido com o Pelé -, na outra fez o que considera ser a obra-prima dos seus talentos em Belas-Artes, um rato Mickey. Disse-lhe: no primeiro jogo Romário foi Pelé, no segundo foi um Mickey Mouse. Romário não entendia uma palavra de inglês, mas recebeu a mensagem na totalidade. A preguiça não casava com o seu jogo cintilante.
As pintas do leopardo ou um conselho com quase 30 anos
O padre Américo, para quem não havia rapazes maus, ficaria estarrecido ao ouvir o comentário, mas Robson não esqueceu o conselho que recebeu, no México, quando tinha 36 anos e era um jovem treinador com experiência de um ano no Ipswich Town. Berti Mee, na altura manager do Arsenal, era o guru do grupo de quase 20 treinadores ingleses que acompanhavam o Mundial de 70. Os jantares animavam-se invariavelmente em torno do futebol, das tácticas, dos jogadores, e Mee disse ao jovem Robson uma frase lapidar:Nunca compres apenas bons jogadores, compra boas pessoas. Um leopardo nunca deixará de ter pintas, e se encontrares um mau carácter na equipa, despacha-o, vende-o, de preferência ao vizinho do lado, há sempre quem pense que um dia há-de mudar, mas nunca mudará.
Esta é uma das máximas que Bobby Robson afirma ter tentado manter durante a sua longa carreira de gestor de homens. Foi há 30 anos, mas o bom velho Mee tinha razão. Não há talento que compense um carácter conflituoso, intriguista. Um jogador que só protesta, que passa a vida a queixar-se e a dizer mal é o melhor que temos para vender ao adversário. Envenena tudo. A polidez britânica Robson serviu-lhe para se recusar a apontar exemplos: Oh, conheci alguns leopardos, mas não digo o nome.
O remorso na morte de Rui Filipe
Uma conversa ao pequeno-almoço quase redundava na história do treinador que falou muito e quase perdia o avião, mas entre a pressão do tempo e a proverbial disponibilidade sempre que o tema é futebol, Robson revelou uma das memórias mais tristes dos seus quase 50 anos de carreira. Pedem uma história dramática, um mau momento? A morte do Rui Filipe. Não esquecerei, nunca.
Tínhamos jogado na quarta-feira com o Benfica, ele marcou um golo fabuloso, mas apanhou um cartão amarelo e não podia jogar a partida seguinte. Veio ter comigo e pediu-me que o dispensasse de ficar no estágio, em Vila Nova de Gaia jogávamos no Domingo com o Beira Mar. De facto, não havia necessidade de manter no hotel um jogador que não podia jogar e disse-lhe para ir para casa ver a família. No dia do jogo, lembro-me que dormi até tarde, porque eu sou daqueles treinadores que dormem sempre bem antes dos jogos. Quando desci do quarto tinha o Inácio e o Aloísio à espera, que me disseram: Mister, queremos falar consigo. Então contaram-me: O Rui Filipe morreu. Não percebi e perguntei:O quê?. Repetiram: O Rui Filipe está morto, mister. Fiquei siderado e só perguntava: O nosso Rui Filipe? O meu Rui Filipe?. Não podia deixar de pensar que se não fosse aquele cartão e eu o ter autorizado a ir para casa ainda estaria aqui, connosco.
Vou começar por alguém que faleceu recentemente, um senhor do futebol mundial, que tem um cantinho reservado na história do nosso clube:
Bobby Robson
Viveu aproximadamente 60 anos no futebol, mas não parou de se espantar com o muito que a modalidade sempre teve para evoluir e com a sua capacidade de atrair tecnologias de ponta (só a UEFA é que não vê isso) e dinheiro, muito dinheiro. Bobby Robson, sir Robert Robson, viveu metade do século XX entre bolas de futebol, jogadores, relvados e bancadas, assistiu à quase morte do jogo preferido dos ingleses e à sua ressurreição, correu meio mundo atrás de uma bola, mas as suas memórias do século começam pelo mundo da sua rua, pelos primeiros pontapés que, afirma, deu ainda na barriga da mãe. Claro que todos os bebés dão pontapés no ventre materno, mas os de Bobby estavam destinados a dar brado e a deixar grandes lembranças.
O dinheiro faz girar o Mundo e o mundo de Bobby Robson, ex-praticante de topo da modalidade, ex-seleccionador de Inglaterra, treinador de muitos clubes numa boa mão-cheia de países incluindo Portugal, onde treinou o FC Porto, por quem ganhou os primeiros dois títulos do Penta -, foi o futebol. Viveu-o dentro do campo, no balneário, no banco, na bancada, sentiu-lhe as necessidades e as transformações. Muitas protagonizou-as, o que lhe conferiu toda a autoridade para ser acreditado quando afirmou queO jogo é tão perene quanto o seu amor por ele. Vamos lá, então, a essas lembranças:
Comecei o futebol na barriga da minha mãe
Comecei na rua, no recreio da escola, acho que sou dependente do futebol desde os dez anos, e hoje; a dois meses de completar 50 anos sobre o meu primeiro contrato de profissional, que assinei aos 17 anos, vejo como o jogo sofreu mudanças dramáticas. Mudou, desde logo, de um desporto para uma indústria, que movimenta milhões, que são reinvestidos em infra-estruturas, em jogadores. É incrível o poder financeiro do futebol, sublinha, recordando a singeleza dos equipamentos, das instalações, do pouco que custava juntar onze rapazes de cada lado do campo e dar início a uma partida de futebol.
Literalmente onze, porque Bobby Robson era do tempo em que as regras não permitiam a substituição de jogadores, lesionados ou não. A tremenda evolução das técnicas de reabilitação de lesões, os níveis a que a aptidão física dos jogadores foi elevada, a capacidade atlética envolvida num jogo de futebol, eram outros dos espantos de Robson, que aos 24 anos era um top-player da selecção de Inglaterra, um carro de combate no meio-campo da Rosa.
Ia ser modesto, mas se estás na selecção de Inglaterra eu estive entre 1956 e 1962 é porque és mesmo bom. E naquele trabalho de centrocampista, para além de lutar, puxar, empurrar, fintar, saltar, eu, um jogador de elite, corria, o quê? seis milhas? [9,6 quilómetros]. Hoje, um médio-centro como Roy Keane, corre 10 milhas por jogo. O futebol tem acompanhado a evolução geral os cavalos correm mais, os carros correm mais e o jogador actual é também uma máquina impressionante de aptidão atlética. A que a ciência veio dar uma ajuda incomensurável. No meu tempo, um menisco podia custar uma carreira, agora temos três semanas de estaleiro e de volta ao jogo. O Jorge Costa? Há 50 anos, aquelas operações ao joelho teriam acabado com ele. Os avanços médicos aplicados no futebol são uma coisa maravilhosa que ajudam a modalidade a ser cada vez mais uma actividade de ponta.
Robson não liga explicitamente uma coisa à outra, mas percebe-se, no modo como o seu discurso se articula, que há muito de protecção do investimento nesta ligação entre o contributo científico captado para o futebol e o preço exorbitante dos artistas da actualidade. Com graça, o ex-treinador do FC Porto lamenta-se por não ter inscrito no seu contrato com Barcelona, luvas de dez por cento no negócio de transferência de Ronaldo «O Fenómeno». Levei-o para o Barça por 20 milhões de dólares e o clube vendeu-o por 32 milhões no final da época. Digam-me que outro negócio garante uma tão grande margem de lucro em tão pouco tempo? Hoje, os salários são uma coisa do outro mundo, mas quando pensamos no que ganham, por exemplo, as televisões com as transmissões dos jogos, percebemos que tem de ser mesmo assim.
E onde é que isto vai parar? Robson não duvida por um momento que redundará em cada vez mais e melhor futebol. Pensava-se que a televisão iria matar o futebol, e vemos como é mentira. Em Newcastle, temos o campo cheio de gente que acaba de ver o nosso jogo e vai para casa ligar a Sky para ver mais. A televisão tornou o futebol mais popular, mais atrente, mais universal.
O amor dos ingleses ao futebol resgatou-o ao futebol
Deste percurso vertiginoso pela modalidade que o apaixona há meio século, Robson realça nas suas memórias, alguns momentos negros que o atingiram, até pessoalmente. Em Inglaterra, corremos o risco de acabar com o futebol. O hooliganismo, que por muito tempo, demasiado tempo, as autoridades subestimaram, ia matando o futebol, e só a intervenção do Governo e das polícias tornou possível o seu resgate. Era seleccionador nacional na altura e não posso esquecer que estivemos banidos da Europa cinco anos. Mas o futebol é o nosso jogo nacional, não é o críquete ou o Râguebi, não! Os ingleses inventaram o futebol. Fomos mestres, mas percebemos que estava na hora de sermos alunos. E foi o amor dos ingleses ao futebol que o ressuscitou. Conhece os campos ingleses da actualidade? Um regalo: bons relvados, belos estádios, fantástico ambiente, segurança. É o que vocês precisam aqui em Portugal. É o que o Euro2004 vos pode dar.
De rajada, Robson enumera outras memórias que ajudaram o futebol a ser O jogo. O passe para trás, para o guarda-redes: acabou, e o futebol ganhou com isso. Os três pontos por vitória. O que eu pugnei por isso e o bem que isso fez ao futebol. O fora-de-jogo de posição: acabou, e que belos golos nasceram para o futebol. Olhem, o do Jardel, frente ao Molde (26/10/1999) Seria impossível se essa regra ainda existisse. Acho que agora só falta melhorar a questão dos cartões amarelos. Acabar com aquilo que nós chamamos os jogos confeti. O futebol não é um desporto violento, os jogadores de futebol não são pessoas violentas. Então, siga, O jogo.
Lei, Ordem, Paz e Futebol
Homem preocupado com O jogo, Bobby Robson preconiza que o século XXI continuará a ser o século do futebol. É barato, toda a gente o pode praticar, basta uma bola e um pouquinho de espaço. Em África nem de botas precisam. Acho mesmo que enquanto houver oxigénio haverá futebol, e cada vez mais apreciado e praticado, em todo o Mundo.
Mudanças no jogo, Robson antevê desde logo uma, relacionada com o golo. É preciso que, de uma vez por todas, se acabe com dúvida em torno desse momento crucial no jogo. Não tarda muito que introduzam no campo a tecnologia necessária. Ela existe por exemplo no críquete é só utilizá-la. Não concordo com o uso de meios auxiliares para outras situações que ocorrem no campo. A falta, o fora-de-jogo OK, o árbitro ode errar, é um dos muitos factores de erro do futebol, onde toda a gente erra. Mas golo é golo e colocar ao serviço do golo a tecnologia é uma boa causa para a próxima década.
Mudanças exige-as em muitos outros campos da vida da humanidade. Racismo é para acabar: Somos um mundo de pretos e de brancos e temos que aprender a viver uns com os outros. Porque os velhos valores devem prevalecer sobre todos as ameaças, diz Robson. Lei, ordem e paz são essenciais à protecção da nossa sociedade. Temos por garantido que toda a gente come as duas refeições por dia a que tem direito, mas continua a haver muita, demasiada fome e guerras no Mundo. O crescimento da população é um problema grave que a nossa sociedade enfrentará cada vez com maior acuidade no futuro, e aí só há uma forma de actuar, que é a educação.
Tão íntima dos britânicos como os bons e abundantes relvados, a palavra democracia aflora por diversas vezes o discurso deste homem do futebol que costuma ser avesso a politica.
Viver é muito bom e há muita gente que não tem tempo para viver. O Mundo é um lugar muito grande e é tarefa de todos fazer com que o nosso planeta seja um bom lugar para se viver bem. No meu mundo, por exemplo, não há drogas, é um fenómeno que me é exterior, na família, no bairro, na rua, entre amigos, mas a droga é como uma guerra, ou não faz também muitas vítimas e provoca enorme dor no Mundo? Esse é um bom desafio para o próximo milénio. Temos que tomar conta do nosso mundo.
O rato Mickey de Romário no quadro das tácticas
Talentos conheceu Bobby Robson um pouco por todo o mundo e do discurso do inglês percebe-se a admiração desmesurada que sente pró Ronaldo «O Fenómeno». Mas uma história saborosa dos tempos em que treinou e levou a campeão o PSV, tem por protagonista o outro Ro da famosa dupla de avançados do Brasil. Romário, que foi jogador de Robson na sua passagem pela Holanda, acabara de mostrar os dois lados da sua personalidade, fazendo um primeiro jogo de sonho e um outro que só faltou ter jogado a dormir e com as mãos nos bolsos. No reencontro com o plantel após a folga, Robson usou o quadro Basculante das tácticas que pontifica em qualquer balneário para expressar a sua opinião sobre o tema: numa das faces desenhou Pelé e o que eu me esforcei para que o desenho ficasse parecido com o Pelé -, na outra fez o que considera ser a obra-prima dos seus talentos em Belas-Artes, um rato Mickey. Disse-lhe: no primeiro jogo Romário foi Pelé, no segundo foi um Mickey Mouse. Romário não entendia uma palavra de inglês, mas recebeu a mensagem na totalidade. A preguiça não casava com o seu jogo cintilante.
As pintas do leopardo ou um conselho com quase 30 anos
O padre Américo, para quem não havia rapazes maus, ficaria estarrecido ao ouvir o comentário, mas Robson não esqueceu o conselho que recebeu, no México, quando tinha 36 anos e era um jovem treinador com experiência de um ano no Ipswich Town. Berti Mee, na altura manager do Arsenal, era o guru do grupo de quase 20 treinadores ingleses que acompanhavam o Mundial de 70. Os jantares animavam-se invariavelmente em torno do futebol, das tácticas, dos jogadores, e Mee disse ao jovem Robson uma frase lapidar:Nunca compres apenas bons jogadores, compra boas pessoas. Um leopardo nunca deixará de ter pintas, e se encontrares um mau carácter na equipa, despacha-o, vende-o, de preferência ao vizinho do lado, há sempre quem pense que um dia há-de mudar, mas nunca mudará.
Esta é uma das máximas que Bobby Robson afirma ter tentado manter durante a sua longa carreira de gestor de homens. Foi há 30 anos, mas o bom velho Mee tinha razão. Não há talento que compense um carácter conflituoso, intriguista. Um jogador que só protesta, que passa a vida a queixar-se e a dizer mal é o melhor que temos para vender ao adversário. Envenena tudo. A polidez britânica Robson serviu-lhe para se recusar a apontar exemplos: Oh, conheci alguns leopardos, mas não digo o nome.
O remorso na morte de Rui Filipe
Uma conversa ao pequeno-almoço quase redundava na história do treinador que falou muito e quase perdia o avião, mas entre a pressão do tempo e a proverbial disponibilidade sempre que o tema é futebol, Robson revelou uma das memórias mais tristes dos seus quase 50 anos de carreira. Pedem uma história dramática, um mau momento? A morte do Rui Filipe. Não esquecerei, nunca.
Tínhamos jogado na quarta-feira com o Benfica, ele marcou um golo fabuloso, mas apanhou um cartão amarelo e não podia jogar a partida seguinte. Veio ter comigo e pediu-me que o dispensasse de ficar no estágio, em Vila Nova de Gaia jogávamos no Domingo com o Beira Mar. De facto, não havia necessidade de manter no hotel um jogador que não podia jogar e disse-lhe para ir para casa ver a família. No dia do jogo, lembro-me que dormi até tarde, porque eu sou daqueles treinadores que dormem sempre bem antes dos jogos. Quando desci do quarto tinha o Inácio e o Aloísio à espera, que me disseram: Mister, queremos falar consigo. Então contaram-me: O Rui Filipe morreu. Não percebi e perguntei:O quê?. Repetiram: O Rui Filipe está morto, mister. Fiquei siderado e só perguntava: O nosso Rui Filipe? O meu Rui Filipe?. Não podia deixar de pensar que se não fosse aquele cartão e eu o ter autorizado a ir para casa ainda estaria aqui, connosco.