Já agora, um grande texto sobre o tema do momento, cortesia do Reflexão Portista:
"Na conferência de imprensa que se seguiu ao triunfo por 3-0 sobre o Arouca, Nuno Espirito do Santo teve um gesto extremamente atípico num treinador de futebol de elite: falou de futebol, falou de treino, falou de táctica, falou de mentalidade. NES desligou o piloto automático habitual que faz com que cada conferência acabe quase sempre por ser um exercício de repetição da anterior e deixou plasmado, visualmente, o que ele entende por "Jogar á Porto". Um modelo onde o sistema, a táctica, o desenho em campo, tudo se reduza a um plano secundário face a um conjunto de valores partilhados pelo grupo. E sabem que mais? Tem toda a razão.
O "Jogar á Porto" é um conceito pintocostista, forjado na década de vitórias dos anos oitenta, que bebia directamente da radical mudança implementada na década anterior pelo "refundador" moral do clube, José Maria Pedroto. Pedroto - o mais brutal treinador da história do futebol luso - não era um inovador táctico como Guardiola nem era um motivador nato como Simeone nem um gestor de grupo privilegiado como foi (ou é?) José Mourinho. Era um pouco de tudo. Para o "Zé do Boné" jogar em 4-4-2 - a táctica habitual da época - não era um santo e senha mas também não era um condicionante. Jogou em 4-5-1, jogou em 4-2-4, jogou em 4-3-3 em muitas ocasiões da sua carreira. Porque os resultados eram quase sempre os mesmos? Porque o importante não era o desenho, era a atitude. Se algo defendeu Pedroto foi a criação de uma base forte no balneário, um espírito de coesão de equipa onde cada jogador sabia que tinha e devia confiar no colega, onde todos jogavam para todos - mesmo quando havia dandys do talento de um Oliveira - e que o importante era controlar onde se jogava - o espaço - e o ritmo a que se jogava - a bola - dentro de uma dinâmica grupal. Para Pedroto as linhas não existiam por si mesmas se não que eram tecidas no balneário, no treino, nas conversas com e entre os jogadores. Se um jogador estivesse preparado a dar a vida pelo colega em campo, a dar tudo pelo clube, então as probabilidades de êxito eram muito maiores. Claro que Pedroto não inventou nada. Quase todas as grandes equipas da história partiam dessa premissa mas no caso do Porto, um clube sem dinheiro para contratar estrelas e que dependia enormemente da formação e da prospecção em clubes vizinhos - de onde vinha o 80% do plantel quase sempre - essa realidade tornava-se cada vez mais importante. Para contrariar o "Sistema" e a qualidade dos planteis mais ricos dos clubes de Lisboa, o forjar desse "Jogar á Porto", tão bem interpretado por Rodolfo e João Pinto, por Octávio e André, por Jaime Magalhães e Frasco, durante esses quinze anos, assentou as sólidas base do êxito do clube mesmo quando Pedroto já não estava.
NES recuperou exactamente as mesmas expressões, a mesma atitude na formação do grupo. Ele conhece a casa. Ele viveu o que é "Jogar á Porto" mesmo na sua etapa já mais decadente onde os valores se foram perdendo por culpa de uma SAD com mais olhos que barriga que levaram o clube á situação financeira penosa onde se encontra. E portanto é natural que seja ele - e não Lopetegui ou Peseiro - a explicar algo que, no entanto, também Villas-Boas e Vitor Pereira fizeram durante três anos. A diferença? NES tem claramente material de pior qualidade para por a ideia em prática. Porque criar o pilar que é introduzir no jogador o "Jogar á Porto" é fundamental mas não suficiente. Não o é quando falta qualidade individual. Não o é quando o jogador sabe que daqui a oito meses nada disto lhe vai servir porque vai ser despachado pela SAD para tapar buracos. Não o é quando é o próprio jogador que está com a cabeça noutro lado. Esses problemas não os teve nunca Pedroto - que viveu outro mundo - e que agora minam o balneário. Porquê?
Porque foi a própria SAD do clube que em diversas ocasiões manifestou a evidência de que o jogador do FCP é-o apenas durante ciclos curtos. Foram eles que abandonaram a formação e o campo de recrutamento local - que permitiu que os Diogo Jota, Rafas e afins acabem noutro lado - em função de negócios aparentemente mais lucrativos mas que deixavam o balneário sem referências. Foram eles que procuraram satisfazer caprichos de treinador, agentes e comissionistas e esqueceram-se da necessidade de ter sempre lideres a passar a mensagem, nacionais ou estrangeiros. Porque olhando para Helton ou Sapunaru, para Lucho ou Hulk, está claro que não é preciso ser-se portuense para ser-se "Jogador á Porto". Mas hoje já nem isso sobra porque o importante é o tal ciclo que acabou num problema de muitos milhões e poucas soluções. Os balneários hoje não são os de antes nem o são os jogadores. André Silva é da casa. Ruben Neves também. Ambos querem ser jogador do Porto durante muito tempo mas ambos sabem que o clube os tentou vender num passado muito recente porque as contas são mais importantes que ter essa base de "Jogar á Porto". Com que motivação jogam se sabem que têm o destino marcado por decisões que não são suas. E que pode fazer um treinador que quer criar esse núcleo duro se os jogadores que escolhe para que façam parte do mesmo são provavelmente os primeiros com guia de marcha - juntem a esses dois Danilo, Layun e Herrera e podem fazer-se uma ideia de quem vai ser vendido em Junho para salvar as contas.
NES deu ontem uma lição que todos os portistas que cresceram com o clube nos últimos trinta anos sabem de memória. Que "Jogar á Porto" não pode ser nunca um espelho do que faz um Barcelona porque as nossas condições são e sempre foram diferentes. Que querer implementar um desenho táctico, um sistema de jogo, nunca pode ser a prioridade num clube que se fez grande com base noutros princípios e valores. NES tacticamente não é um treinador entusiasmante nem apresenta um futebol vistoso e provavelmente não tem sequer nível mínimo exigido para levar o FC Porto ao êxito. Mas sabe qual é a base a partir da qual se constroem os triunfos nesta instituição e é normal que ressalve esse processo, sobretudo quando, e é evidente, tem um grupo de jogadores novos e jovens, a maioria dos quais com o futuro já traçado antes de começar, que dificultam ainda mais o seu trabalho. Não tem a mesma matéria prima da esmagadora maioria dos treinadores do FC Porto pos-Pedroto e não tem culpa no cartório nesse aspecto. É de louvar que queira recuperar uma ideia e uma mensagem - pelo menos na teoria - e que procure criar este cordão de empatia com os adeptos que valorizam essa aproximação ao ADN do clube. No entanto, sabe ele e sabemos que nós que isso será sempre insuficiente se todo o trabalho de base for deitado borda fora para tapar erros de muitos anos. Porque se algo fez do FC Porto grande, no passado, foi a constância de uma ideia, esse "Jogar á Porto" que mais do que as vitórias em campo selaram para sempre a história deste clube."