Não concordo com tudo - porque acho que combater o populismo é como tentar parar o vento com as mãos, não há propriamente uma estratégia - mas é um ponto de vista válido, de certeza mais valido do que o meu.
O PAÍS QUE ESTAVA ESCRITO
Por estes dias, falei para o El País (Espanha) e o para o De Standaard (Bélgica). Antecipei, de certo modo, o cenário destas eleições. Não me entendam mal: não sou visionário nem li nas cartas. Mas ando há quase cinco anos a acompanhar o eleitorado do Chega, a segui-lo, a falar com ele em todo o País, e talvez isso valha alguma coisa. Por isso, não é surpresa para mim o que aconteceu. Quem me conhece e me atura amiúde a falar sobre estes temas, em privado ou em público, sabe.
Não, não existem 22 ou 23 por cento de "fascistas", tirem isso da ideia.
Sim, há por ali muitos saudosos do antigamente, há racistas e outra gente, da elite financeira à arraia-miúda, muito pouco recomendável, a vários níveis. Mas que não se tome a parte pelo todo. Passei horas, muitas horas com largas dezenas de militantes e eleitores do Chega e muitos deles talvez queiram, apenas, ser ouvidos ou não serem esquecidos ou atropelados por sucessivas governações. Confundem tudo? Estão a cavar a própria desgraça e não sabem? Talvez. Mas a raiva e o desespero fazem o caminho da razão. E do outro lado, verdade seja, só têm arrogância, por vezes com irritantes tiques urbanos e de cátedra, a explicar-lhes o que devem ou não fazer. Ou pensar. Chamar-lhes "fascistas", insultá-los, ridicularizá-los até à exaustão, dá este resultado.
E se experimentássemos, por uma vez, ir ao encontro deles, ouvi-los, tentar saber os porquês de pensarem o que pensam e decidirem o que decidem, não apenas nas campanhas eleitorais? E se lhes fizéssemos perguntas em vez de lhes vendermos retóricas empacotadas? Esqueçam os Venturas, os Pintos, os Frazões e afins. Não façam partilhas em barda, não insultem como carneiros só porque acham que Ventura fingiu um problema de saúde. Como qualquer especialista saberá explicar - e até uma criança entenderia - o ódio nas redes sociais conta sempre a favor do alvo e faz espumar o algoritmo de excitação. Isto já é quase tão La Palice que me espanta como é que tanta gente ainda se presta ao papel de idiota útil ao partilhar, como se não houvesse amanhã, o enxovalho, o insulto e o apedrejamento, por vezes quase ao mesmo nível do palavreado de tasca que tomou conta do Parlamento.
Muitos, à direita, adotaram a narrativa do Chega de forma diplomática, escondendo a mãozinha marota - eles, mais polidos, claro, não são de atirar pedras nem sujar as mãos. Antes das eleições, o Chega já estava a ganhar porque os temas da sua agenda já andavam na boca de outra direita, dita civilizada, que não suja a gravata, e contagiara os debates e o horário nobre. São moderados ou serão simplesmente covardes?
À esquerda continua a confundir-se desejos com a realidade, é uma longa história, caso clínico. Estão na sua bolha ou no seu parque temático. Têm todas as certezas do mundo, as cartilhas de sempre e um sindicalismo para um País que já não existe. E assim seguem, de derrota em derrota, até acabarem nos preparos que se viram.
Nestas eleições, fizeram ainda mais: prestaram-se ao ridículo para tentar conquistar os jovens. Tenho duas novidades para esses: a fotocópia, por bem intencionada que seja, é sempre pior do que o original, mesmo quando o original é alarvidade ou pantomina pura; quanto aos jovens, posso dizer-vos que já andam, muitos deles, em modo extremista tik-tok, a fazer a saudação nazi nas escolas, a sugerir trabalhos escolares sobre o líder do Chega, a fazer bullying racista, xenófobo e por aí adiante. Querem tentar começar por aí ou nem por isso?
Por fim: muitos confundem os dirigentes e deputados do Chega com o seu universo eleitoral, outro erro crasso. As duas coisas não são iguais. E quanto mais depressa se perceber isso, mais estaremos perto de atacar o problema. Se não o fizerem, terão um Trump à portuguesa no poder mais cedo do que tarde. O caso Montenegro, acreditem, não vai acabar aqui. Em breve, talvez haja mais. Em que situação ficaremos nessa altura? Será que Montenegro chegará a tomar posse como primeiro-ministro?
Do jornalismo, ou de grande parte dele, para ser justo com as exceções, já não espero nada, nadinha. Falta memória, mas isso não é de hoje. Falta decência, mas também não é de agora. O que certas chefias e direções permitiram nesta campanha é o resultado de muitos anos de "infoentertenimento". Estava escrito. Se levamos o "pé em riste" e o estilo "big brother" para a política e o jornalismo, não nos queixemos dos resultados. Há umas décadas, o escritor Mário de Carvalho antecipou: um jornalismo cão só merece um mundo-cão.
O que se gasta em diretos insanos, a raiar a imbecilidade e a ignomínia, dava para muitas reportagens aprofundadas no "País do Chega". Falem dos problemas dos "left behinders", tragam-nos para a agenda política, e talvez tenham menos extremismos de trazer por casa. Não me venham falar da crise do jornalismo quando se gastam milhões a cavar a sepultura em diretos e reportagens que ampliam os fenómenos que o jornalismo tem obrigação de combater. Não se gasta dinheiro a reportar o País silenciado, sofrido, esquecido, mas gastam-se fortunas a alimentar o populismo com populismo. Junta-se a fome à vontade de comer. É um banquete para o partido que sabemos.
Não, o "jornalismo" não fará um exame de consciência. Esqueçam. Não está para isso e não é uma legião de precários e tarefeiros de espinha direita que tem a força para mudar as circunstâncias. Os menos culpados são, muitas vezes, os que andam na estrada. Mas mesmo aí, assuma-se, foi de fugir.
Não culpem o "povo", essa entidade capturada por todas as agendas e retóricas políticas. O "povo" não é uma entidade coletiva self-service, consoante a nossa vontade ou moldura. Há muitas cabeças, existências, quotidianos e amarguras que não são explicáveis sem termos em conta as zonas cinzentas das suas vidas e as suas muitas contradições. Há um País, com todas as suas diferenças, para conquistar para "o lado bom da força", ou seja, para um patamar de decência democrática, e reconciliá-lo com uma ética e uma noção mínima de compromisso e integridade políticas. Fazê-lo do alto da burra, sem humildade e sem procurar estabelecer um ponto de contacto e um encontro com o adversário, por muito Shrek que nos pareça, só dará este resultado.