Memórias do século XX

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No início deste século (XXI), penso que o jornal «OJOGO», trouxe à estampa memórias de várias figuras do desporto nacional e internacional, algumas ligadas ao FC Porto e será sobre estas que este tópico incidirá. Pois bem, passados nove anos sobre essas declarações, é curioso observar o que foi recordado nessa altura e o que entretanto terá mudado.
Vou começar por alguém que faleceu recentemente, um senhor do futebol mundial, que tem um cantinho reservado na história do nosso clube:

Bobby Robson
Viveu aproximadamente 60 anos no futebol, mas não parou de se espantar com o muito que a modalidade sempre teve para evoluir e com a sua capacidade de atrair tecnologias de ponta (só a UEFA é que não vê isso) e dinheiro, muito dinheiro. Bobby Robson, “sir” Robert Robson, viveu metade do século XX entre bolas de futebol, jogadores, relvados e bancadas, assistiu à quase morte do jogo preferido dos ingleses e à sua ressurreição, correu meio mundo atrás de uma bola, mas as suas memórias do século começam pelo mundo da sua rua, pelos primeiros pontapés que, afirma, deu ainda na barriga da mãe. Claro que todos os bebés dão pontapés no ventre materno, mas os de Bobby estavam destinados a dar brado e a deixar grandes lembranças.
O dinheiro faz girar o Mundo e o mundo de Bobby Robson, ex-praticante de topo da modalidade, ex-seleccionador de Inglaterra, treinador de muitos clubes numa boa mão-cheia de países – incluindo Portugal, onde treinou o FC Porto, por quem ganhou os primeiros dois títulos do Penta -, foi o futebol. Viveu-o dentro do campo, no balneário, no banco, na bancada, sentiu-lhe as necessidades e as transformações. Muitas protagonizou-as, o que lhe conferiu toda a autoridade para ser acreditado quando afirmou que”O” jogo é tão perene quanto o seu amor por ele. Vamos lá, então, a essas lembranças:

“Comecei o futebol na barriga da minha mãe”
“Comecei na rua, no recreio da escola, acho que sou dependente do futebol desde os dez anos, e hoje; a dois meses de completar 50 anos sobre o meu primeiro contrato de profissional, que assinei aos 17 anos, vejo como o jogo sofreu mudanças dramáticas. Mudou, desde logo, de um desporto para uma indústria, que movimenta milhões, que são reinvestidos em infra-estruturas, em jogadores. É incrível o poder financeiro do futebol”, sublinha, recordando a singeleza dos equipamentos, das instalações, do pouco que custava juntar onze rapazes de cada lado do campo e dar início a uma partida de futebol.
Literalmente onze, porque Bobby Robson era do tempo em que as regras não permitiam a substituição de jogadores, lesionados ou não. A tremenda evolução das técnicas de reabilitação de lesões, os níveis a que a aptidão física dos jogadores foi elevada, a capacidade atlética envolvida num jogo de futebol, eram outros dos espantos de Robson, que aos 24 anos era um “top-player” da selecção de Inglaterra, um carro de combate no meio-campo da “Rosa”.
“Ia ser modesto, mas se estás na selecção de Inglaterra – eu estive entre 1956 e 1962 – é porque és mesmo bom. E naquele trabalho de centrocampista, para além de lutar, puxar, empurrar, fintar, saltar, eu, um jogador de elite, corria, o quê? seis milhas? [9,6 quilómetros]. Hoje, um médio-centro como Roy Keane, corre 10 milhas por jogo. O futebol tem acompanhado a evolução geral – os cavalos correm mais, os carros correm mais e o jogador actual é também uma máquina impressionante de aptidão atlética”. A que a ciência veio dar uma ajuda incomensurável. “No meu tempo, um menisco podia custar uma carreira, agora temos três semanas de estaleiro e de volta ao jogo. O Jorge Costa? Há 50 anos, aquelas operações ao joelho teriam acabado com ele. Os avanços médicos aplicados no futebol são uma coisa maravilhosa que ajudam a modalidade a ser cada vez mais uma actividade de ponta”.
Robson não liga explicitamente uma coisa à outra, mas percebe-se, no modo como o seu discurso se articula, que há muito de protecção do investimento nesta ligação entre o contributo científico captado para o futebol e o preço exorbitante dos artistas da actualidade. Com graça, o ex-treinador do FC Porto lamenta-se por não ter inscrito no seu contrato com Barcelona, luvas de dez por cento no negócio de transferência de Ronaldo «O Fenómeno». “Levei-o para o Barça por 20 milhões de dólares e o clube vendeu-o por 32 milhões no final da época. Digam-me que outro negócio garante uma tão grande margem de lucro em tão pouco tempo? Hoje, os salários são uma coisa do outro mundo, mas quando pensamos no que ganham, por exemplo, as televisões com as transmissões dos jogos, percebemos que tem de ser mesmo assim”.
E onde é que isto vai parar? Robson não duvida por um momento que redundará em cada vez mais e melhor futebol. “Pensava-se que a televisão iria matar o futebol, e vemos como é mentira. Em Newcastle, temos o campo cheio de gente que acaba de ver o nosso jogo e vai para casa ligar a Sky para ver mais. A televisão tornou o futebol mais popular, mais atrente, mais universal”.

“O amor dos ingleses ao futebol resgatou-o ao futebol”
Deste percurso vertiginoso pela modalidade que o apaixona há meio século, Robson realça nas suas memórias, alguns momentos negros que o atingiram, até pessoalmente. “Em Inglaterra, corremos o risco de acabar com o futebol. O hooliganismo, que por muito tempo, demasiado tempo, as autoridades subestimaram, ia matando o futebol, e só a intervenção do Governo e das polícias tornou possível o seu resgate. Era seleccionador nacional na altura e não posso esquecer que estivemos banidos da Europa cinco anos. Mas o futebol é o nosso jogo nacional, não é o críquete ou o Râguebi, não! Os ingleses inventaram o futebol. Fomos mestres, mas percebemos que estava na hora de sermos alunos. E foi o amor dos ingleses ao futebol que o ressuscitou. Conhece os campos ingleses da actualidade? Um regalo: bons relvados, belos estádios, fantástico ambiente, segurança. É o que vocês precisam aqui em Portugal. É o que o “Euro’2004 vos pode dar.
De rajada, Robson enumera outras memórias que ajudaram o futebol a ser “O” jogo. “O passe para trás, para o guarda-redes: acabou, e o futebol ganhou com isso. Os três pontos por vitória. O que eu pugnei por isso e o bem que isso fez ao futebol. O fora-de-jogo de posição: acabou, e que belos golos nasceram para o futebol. Olhem, o do Jardel, frente ao Molde (26/10/1999) … Seria impossível se essa regra ainda existisse. Acho que agora só falta melhorar a questão dos cartões amarelos. Acabar com aquilo que nós chamamos os jogos “confeti”. O futebol não é um desporto violento, os jogadores de futebol não são pessoas violentas. Então, siga, “O” jogo”.

Lei, Ordem, Paz e Futebol
Homem preocupado com “O” jogo, Bobby Robson preconiza que o século XXI continuará a ser o século do futebol. “É barato, toda a gente o pode praticar, basta uma bola e um pouquinho de espaço. Em África nem de botas precisam. Acho mesmo que enquanto houver oxigénio haverá futebol, e cada vez mais apreciado e praticado, em todo o Mundo”.
Mudanças no jogo, Robson antevê desde logo uma, relacionada com o golo. “É preciso que, de uma vez por todas, se acabe com dúvida em torno desse momento crucial no jogo. Não tarda muito que introduzam no campo a tecnologia necessária. Ela existe – por exemplo no críquete – é só utilizá-la. Não concordo com o uso de meios auxiliares para outras situações que ocorrem no campo. A falta, o fora-de-jogo… OK, o árbitro ode errar, é um dos muitos factores de erro do futebol, onde toda a gente erra. Mas golo é golo e colocar ao serviço do golo a tecnologia é uma boa causa para a próxima década”.
Mudanças exige-as em muitos outros campos da vida da humanidade. Racismo – é para acabar: “Somos um mundo de pretos e de brancos e temos que aprender a viver uns com os outros”. Porque os velhos valores devem prevalecer sobre todos as ameaças, diz Robson. “Lei, ordem e paz são essenciais à protecção da nossa sociedade. Temos por garantido que toda a gente come as duas refeições por dia a que tem direito, mas continua a haver muita, demasiada fome e guerras no Mundo. O crescimento da população é um problema grave que a nossa sociedade enfrentará cada vez com maior acuidade no futuro, e aí só há uma forma de actuar, que é a educação”.
Tão íntima dos britânicos como os bons e abundantes relvados, a palavra democracia aflora por diversas vezes o discurso deste homem do futebol que costuma ser avesso a politica.
“Viver é muito bom e há muita gente que não tem tempo para viver. O Mundo é um lugar muito grande e é tarefa de todos fazer com que o nosso planeta seja um bom lugar para se viver bem. No meu mundo, por exemplo, não há drogas, é um fenómeno que me é exterior, na família, no bairro, na rua, entre amigos, mas a droga é como uma guerra, ou não faz também muitas vítimas e provoca enorme dor no Mundo? Esse é um bom desafio para o próximo milénio. Temos que tomar conta do nosso mundo”.

O rato Mickey de Romário no quadro das tácticas
Talentos conheceu Bobby Robson um pouco por todo o mundo e do discurso do inglês percebe-se a admiração desmesurada que sente pró Ronaldo «O Fenómeno». Mas uma história saborosa dos tempos em que treinou e levou a campeão o PSV, tem por protagonista o outro “Ro” da famosa dupla de avançados do Brasil. Romário, que foi jogador de Robson na sua passagem pela Holanda, acabara de mostrar os dois lados da sua personalidade, fazendo um primeiro jogo de sonho e um outro que só faltou ter jogado a dormir e com as mãos nos bolsos. No reencontro com o plantel após a folga, Robson usou o quadro Basculante das tácticas que pontifica em qualquer balneário para expressar a sua opinião sobre o tema: numa das faces desenhou Pelé – “e o que eu me esforcei para que o desenho ficasse parecido com o Pelé” -, na outra fez o que considera ser a obra-prima dos seus talentos em Belas-Artes, um rato Mickey. “Disse-lhe: no primeiro jogo…Romário foi Pelé, no segundo foi um Mickey Mouse”. Romário não entendia uma palavra de inglês, mas recebeu a mensagem na totalidade. “A preguiça não casava com o seu jogo cintilante”.

As pintas do leopardo ou um conselho com quase 30 anos
O padre Américo, para quem não havia rapazes maus, ficaria estarrecido ao ouvir o comentário, mas Robson não esqueceu o conselho que recebeu, no México, quando tinha 36 anos e era um jovem treinador com experiência de um ano no Ipswich Town. Berti Mee, na altura manager do Arsenal, era o guru do grupo de quase 20 treinadores ingleses que acompanhavam o Mundial de 70. Os jantares animavam-se invariavelmente em torno do futebol, das tácticas, dos jogadores, e Mee disse ao jovem Robson uma frase lapidar:”Nunca compres apenas bons jogadores, compra boas pessoas. Um leopardo nunca deixará de ter pintas, e se encontrares um mau carácter na equipa, despacha-o, vende-o, de preferência ao vizinho do lado, há sempre quem pense que um dia há-de mudar, mas nunca mudará”.
Esta é uma das máximas que Bobby Robson afirma ter tentado manter durante a sua longa carreira de gestor de homens. “Foi há 30 anos, mas o bom velho Mee tinha razão. Não há talento que compense um carácter conflituoso, intriguista. Um jogador que só protesta, que passa a vida a queixar-se e a dizer mal é o melhor que temos para vender ao adversário. Envenena tudo”. A polidez britânica Robson serviu-lhe para se recusar a apontar exemplos: “Oh, conheci alguns leopardos, mas não digo o nome”.

O remorso na morte de Rui Filipe
Uma conversa ao pequeno-almoço quase redundava na “história do treinador que falou muito e quase perdia o avião”, mas entre a pressão do tempo e a proverbial disponibilidade sempre que o tema é futebol, Robson revelou uma das memórias mais tristes dos seus quase 50 anos de carreira. “Pedem uma história dramática, um mau momento? A morte do Rui Filipe. Não esquecerei, nunca.
Tínhamos jogado na quarta-feira com o Benfica, ele marcou um golo fabuloso, mas apanhou um cartão amarelo e não podia jogar a partida seguinte. Veio ter comigo e pediu-me que o dispensasse de ficar no estágio, em Vila Nova de Gaia – jogávamos no Domingo com o Beira Mar. De facto, não havia necessidade de manter no hotel um jogador que não podia jogar e disse-lhe para ir para casa ver a família. No dia do jogo, lembro-me que dormi até tarde, porque eu sou daqueles treinadores que dormem sempre bem antes dos jogos. Quando desci do quarto tinha o Inácio e o Aloísio à espera, que me disseram: ‘Mister, queremos falar consigo’. Então contaram-me: ‘O Rui Filipe morreu’. Não percebi e perguntei:’O quê?’. Repetiram: ‘O Rui Filipe está morto, mister’. Fiquei siderado e só perguntava: ‘O nosso Rui Filipe? O meu Rui Filipe?’. Não podia deixar de pensar que se não fosse aquele cartão e eu o ter autorizado a ir para casa ainda estaria aqui, connosco”.
 
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Artur Jorge

A cultura multifacetada de Artur Jorge, o gosto por “tudo o que tem qualidade” – como nos disse há muitos anos – faz dele um personagem que pouco tem a ver com o conceito generalizado do que deverá ser o futebol em Portugal. Noutras paragens, “muito mais” é permitido, tendo acontecido a confissão de Emiliano Mondonico, na altura treinador do Torino, que se fez expulsar quando jogava, para estar livre no Domingo seguinte e poder assistir a um concerto dos Rolling Stones.
Os brandos costumes portugueses, às vezes, como que se recusam a aceitar que “um homem do futebol” possa impressionar-se ou, eventualmente, comover-se com coisas que não incluem o sacrossanto “pontapé-na-chincha”. Em pleno período de reflexão, o antigo treinador do FC Porto regressou por umas horas ao passado, para inventariar as memórias do século. Que incluem os torneios populares do “Diário do Norte”, seis-contra-seis com grandes assistências.

“O Século do 25 de Abril, do FC Porto, de Picasso e de Eusébio…”
“ Lembro-me, como se fosse hoje, dos torneios de futebol organizados no Porto pelo ‘Diário do Norte’, tinha eu dez ou onze anos. Seis-contra-seis, grandes assistências, eu jogava no Centro Académico e a minha mãe fazia-nos as camisolas. Depois, fui por aí fora, a minha carreira de futebolista fez-se, digamos, com alguma lógica e tive a sorte de jogar com o Eusébio, de facto um fenómeno muito especial. Que não era ’deste mundo’, especial como todos os génios, a quem tem de se perdoar o que não se perdoa ao comum dos mortais. E o século XX foi um século de génios, de Picasso a Ghandi, para só falar em duas figuras entre as muitas que marcaram o período em que vivemos”.
Artur Jorge, numa tarde azul decorrente da generosidade de um fim de Novembro clemente, passou sem hesitações dos torneios da sua meninice para a evocação do autor de Guernica e do guia espiritual de uma Índia ainda, “very british”. Desordenadamente, dirão alguns, como se os sentimentos devessem seguir uma qualquer ordem crono lógica ou obedecer a critérios pensados a preceito. Na sua sala, Henry Moore, Giacometti, Basquiat, Elis Regina, John Coltrane e Elvis Costello confrontam-se num duelo em que não pode haver vencedores, porque os méritos não se discutem e os gostos muito menos. Tudo isto, claro, sob o olhar de Sinatra, uma referência muito especial na vida di homem que levou o FC Porto à vitória de Viena e se comoveu quando, emigrante de luxo na Rue de Monceau, ouviu a Portuguesa cantada pelos internacionais do seu país.
Memórias também não se discutem.

“O FC Porto “começou” com Pedroto e Pinto da Costa e foi por aí fora”
“O FC Porto ocupa um lugar muito especial nessas memórias, porque foi lá que comecei a jogar e consegui êxitos importantes na minha carreira de treinador. O clube “começou”, digamos assim, com Pedroto e Pinto da Costa, foi por aí fora, com os resultados que todos conhecem e, hoje, deveria constituir exemplo para todos. Eu, quando ouço dizer que o futebol português está muito mal e reparo que a selecção se situa, regularmente, entre as dez ou quinze melhores no “ranking” da FIFA e os clubes, no seu conjunto, estão no nono lugar da UEFA, contrario frontalmente essa ideia e considero que o final do século nos encontra num excelente lugar, especialmente se pensarmos que o poder económico é nitidamente menor do que o de outros países. Aí, serei um eterno optimista”.
E defende a sua modalidade preferida com a convicção inevitável: “Dei pontapés na bola desde sempre, da mesma forma que as raparigas brincavam com as bonecas! E, apesar dos grandes progressos das outras modalidades, onde se destacam, põe exemplo, o atletismo, o andebol e o basquetebol, sustento que é o futebol a de mais qualidade, pouco importando que os melhores jogadores estejam no estrangeiro, já que a sua nacionalidade continua a ser portuguesa. E isto apesar da evidente melhoria de países como a Noruega, a África do Sul, a Nigéria, que há poucos anos quase nada diziam às pessoas. O progresso foi imenso nos últimos anos do século XX e essa memória guardo-a ciosamente”.

“O 25 de Abril obrigou-nos a aprender como se gere a liberdade”
Em termos gerais, Artur Jorge considera que o século XX foi o “das duas guerras, da medicina, do cinema, do teatro, numa palavra, das coisas muito boas e das coisas muito más. Por cá, o 25 de Abril, inevitável e, por isso mesmo, sem data marcada, obrigou-nos a aprender como se gere a liberdade, coisa que ouvíamos falar sem saber muito bem o que era…as memórias que tenho de quando era jovem preenchem-se, em grande parte, com a lista interminável de coisas proibidas, quase sempre sem qualquer razão. Por isso, a memória do 25 de Abril, quando deixamos de estar orgulhosamente sós, é tão marcante que até parece que tudo aconteceu ontem. Passámos s poder falar alto, sem ter que olhar para o lado, com medo de isto ou daquilo. Olhe-se para Lisboa e para o Porto, que eram, afinal, duas pequenas cidades, veja-se o que hoje acontece, o que se pode ver, fazer, comprar, eu sei lá! Aconteceu há já vinte e cinco anos, poderia ter sido muito mais cedo ou um pouco mais tarde, porque, como disse, a data não estava marcada. Se é a memória mais importante? Não sei, depende da forma de olharmos as coisas”.
E como cinquenta e três anos de memória não cabem em dois dedos de conversa, finalizou com coisas da sua vida: “Passamos por este mundo e levamos connosco uma colecção interminável de recordações. Boas e más, porque tudo faz parte da nossa existência. Eu, claramente, dou graças a Deus por ter “ganho muita coisa”, como se costuma dizer, por ter jogado com grandes futebolistas e ter treinado outros de grande talento, por ter tido a oportunidade de conviver com gente muito boa, no futebol e fora dele. A vida é feita de presenças, algumas delas incontornáveis, especialmente as de pessoas que nunca conhecemos. E, nesse aspecto, só tenho que me dar por feliz quando reconheço que as minhas memórias do século XX se encerram com um saldo francamente positivo”.

“Ter a família… todos os dias”
“Pensando no futebol, eu estou sempre disponível, porque tenho a sensação dessa falta, mas só em termos que me agradem. É que, mesmo reconhecendo a ausência pontual de uma coisa que gosto muito, recusei alguns projectos que, em outras ocasiões, era capaz de ter aceitado. É que, nesta altura, faço coisas que quase nunca fui capaz de fazer por falta de tempo, como seja ir ao cinema, ouvir música, ler livros com regularidade e, às vezes, deitar-me tarde…”.
Assim sendo, Artur Jorge olha para o novo século com o pragmatismo de quem não leva muito tempo a pensar:
“Ter família… todos os dias, é uma coisa maravilhosa, levar os miúdos à escola é sensação que quero prolongar o mais possível, no início de um século excitante. E considero, por exemplo, que o facto de Portugal ir organizar o Campeonato da Europa de 2004 é uma coisa fantástica, quase impossível de prever há bem pouco tempo. E será necessário organizar bem, sabendo eu que somos capazes de o fazer, como já aconteceu relativamente à Expo’98”.
O mundo, esse, preocupa-o: “vamos chegar ao ano 2000 cheios de problemas, infelizmente, bastando pensar no que se passa em Timor, em Angola, em tantos sítios, para se perceber que há muito a fazer, ou melhor, a evitar. Sinto que é urgente que o mundo se torne menos cínico, que as pessoas decidam de vez entender-se, sendo indispensável que os ricos e os poderosos não tenham hesitações. E, quando penso nas crianças e nos idosos, ainda me preocupo mais, porque são eles, afinal, os que estão menos defendidos. E reservo um pensamento para o meu país, que me orgulha pelo que tem feito e pelo que ainda irá fazer, nos primeiros anos de um século que vai confirmar, sem hesitações, o percurso de Portugal nos últimos anos, quando deixou de ser um país… periférico para se afirmar como uma potência respeitada e em pleno progresso”.

Segredos
Os almoços das sextas-feiras, o treino da tarde e a lista dos convocados
Com um sorriso largo, condescendente, Artur Jorge deu conta de uma memória certamente inédita até ao dia em que de resolveu a falar do seu século XX. E fê-lo dando a ideia nítida de que as saudades se manifestam das formas mais variadas.
“Num dos clubes onde trabalhei – e desculpe-me por não dizer em qual – fazíamos dois treinos à sexta-feira, saindo a convocatória para os jogos ao fim da tarde. A certa altura, reparei que os jogadores almoçavam juntos, regressando ao estádio para o apronto final. Achei que se tratava de uma situação clara de solidariedade e espírito de grupo e várias vezes manifestei o meu agrado”.
Claro que o melhor estava para vir: “Mas, em determinado momento, fiquei a saber que os mais velhos encorajavam os mais jovens a beber o seu copito de vinho, com as consequências que se podem imaginar no treino da tarde! Nunca disse nada, achei imensa graça e claro que as minhas decisões nunca foram influenciadas por um “menor rendimento”deste ou daquele. Julgo que, ainda hoje, os “iluminados não sabem… que eu sei”.

João Pinto, André e Silooy, as grandes vedetas e o caso muito especial de Ginola
Artur Jorge jogou ao lado de craques de intenso fulgor, defrontou outros menos valorosos e treinou futebolistas de eleição. Como qualquer ser humano, tem as suas predilecções e, relativamente aos jogadores que orientou, tem um fraquinho muito especial por homens também eles especiais. “Já lhe vou falar dos grandes jogadores, mas quero citar, antes de mais nada, gente como João Pinto, o “capitão” de Viena, André ou Silooy, que talvez não tenham tido o talento de outros mas foram elementos com quem gostei muito de trabalhar, pelo seu empenho, lealdade e profissionalismo, para já não lhe falar da importância que tiveram em termos colectivos. Depois, o que hei-de dizer? Tenho sido um homem feliz nesse aspecto por ter trabalhado com Futre, Madjer, Francescoli, Littbarski, Ricardo, Valdo, Vítor Baía, Fernando Couto, eu sei lá! E falo de memória, sem pensar muito, razão porque terão, certamente, falhado alguns. Mas permito-me destacar um jogador de forma especial, David Ginola, que trabalhou comigo no Matra Racing e, posteriormente, no PSG. A certa altura, antes de uma paragem de Inverno, disse-lhe que teria de trabalhar mais, porque uma equipa que tinha Valdo Ricardo, Weah e tantos outros, não poderia ser de outra maneira. Ginola foi de férias, apresentou-se no regresso em excelentes condições e acabou pró ser determinante na carreira do Paris St-Germain. Ainda hoje mantemos uma excelente relação e o David continua, aos trinta e dois anos, a ser um fantástico jogado”.
 
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Vítor Hugo

Ironia do destino, Vítor Hugo confessou aos 36 anos que a razão principal que o levou a abandonar a prática da sua modalidade de sempre foi o próprio hóquei em patins.
Confuso? O hoquista que marcou a década de oitenta do FC Porto e da selecção portuguesa mostra-se ainda hoje, amargurado com o que o ano de 1992 lhe reservou. Se por um lado, os Jogos Olímpicos de Barcelona não foram a montra que desejava e os jogadores ansiavam, a nível interno o processo de renovação do “seu” FC Porto não foi concretizado como pretendia.
Conclusão, com apenas 29 anos arrumou os patins, deixou clube e selecção e levou para casa uma ideia que ainda hoje o atormenta, pois como diz, “ainda fiquei a dever a mim próprio mais cinco anos de carreira”. Ainda assim, defende-se, atingiu metas que foi estipulando e figurou “entre os melhores do Mundo”.

“Nunca me senti o melhor do Mundo mas sempre quis ganhar tudo”
Por obra e graça da tecnologia, os “exercícios de magia” de Vítor Hugo perdurarão mais tempo na memória colectiva do que os concretizados por aqueles que fizeram do hóquei em patins “o desporto português”. Por culpa das imagens que valem mais do que mil palavras. “Para mim o melhor jogador de hóquei em patins foi o António Livramento. Do Fernando Adrião tenho muita pena, mas só me lembro de o ter visto jogar no Mundial de Lisboa, em 1974, e mesmo assim foram poucas as imagens. Mas, imagino que tenha sido um jogador do outro Mundo”.
A sorte de Vítor Hugo foi ter a televisão do seu lado e ter vivido no melhor momento que a modalidade atravessou em termos internacionais. Ao contrário de outros que recorda como seus ídolos. Hoje lembra os longos anos em que percorreu pistas um pouco por todo o lado, mas recusa o epíteto de melhor do Mundo: “As pessoas diziam isso, mas do que me lembro é que naquela altura todas as selecções tinham as suas figuras e eu estava entre os melhores”, afirma, fazendo notar “que se por um lado, me sentia orgulhoso de ser considerado o melhor estrangeiro do campeonato italiano, quando lá estavam grandes jogadores como o argentino Paez, também tinha a noção que isso concedia-me uma enorme responsabilidade”.
É mais difícil jogar com as palavras do que conduzir a bola na ponta do aléu, por isso Vítor Hugo não gosta que as suas possam gerar duas interpretações: “Vamos lá ver, nunca tive a sensação que era o melhor do Mundo, mas sempre geri a minha forma de estar no desporto com a constante procura de melhorar, com o objectivo de ganhar tudo”. Uma ideia defendida com um remate final: “Mesmo quando era mais novo e jogava na Académica de Espinho não me lembro de entrar para um jogo sem estar movido pela vontade de vencer”.

“Participação nos Jogos Olímpicos foi uma grande desilusão”
Muito cedo foi alvo da admiração daqueles que apoiavam as equipas que representou. Foi assim na Académica de Espinho, prolongou-se no FC Porto e na rápida, mas proveitosa passagem pelo Novara, de Itália. Para se manter no topo não basta ser-se bom. “Mais do que valor inato, é preciso ter-se muita vontade. Há grandes jogadores que tiveram curtas carreiras e não foi por falta de habilidade”. Ou seja, “para se ter um percurso equilibrado e ao mais alto nível temos de ter muita força de vontade para fazer sempre melhor”. A receita do “avançado”: “A minha motivação veio sempre da tentativa de ganhar tudo o que fosse possível e felizmente consegui isso”.
Aos 29 anos Vítor Hugo decidiu colocar o ponto final na sua carreira de hoquista. Ainda esteve inscrito pela Académica de Espinho, pela qual se sagrou campeão nacional da II Divisão, mas “por afazeres profissionais só aparecia nos jogos e nem sempre”. Um fim de carreira prematuro e cuja explicação é surpreendente: “A desilusão em que se saldou a participação do hóquei nos Jogos Olímpicos de Barcelona e o facto de o FC Porto proceder, na altura, a uma renovação que achava necessária, mas com a qual não concordei, pela forma como foi realizada, apressaram a minha decisão, ainda mais porque tinha uma actividade profissional que exigia, cada vez mais, a minha dedicação total”. Resumindo, foram as frustrações geradas pela modalidade que escolheu, que diz ainda amar –“mais do que o hóquei só amo o FC Porto”, afirma -, que o conduziram um dia a convencer-se de que chegara a hora de arrumar o saco no fundo do baú.

“Entre os capazes há sempre os mais atrevidos”
Olhando para os factos com a frieza que a distância temporal agora permite, Vítor Hugo não mostra arrependimento: “Nenhum e apenas pelo facto das desilusões que sofri”. Por isso, hoje afirma com convicção que “fiquei a dever a mim próprio cinco anos de carreira”. Como assim? “O Roberto Crudeli era do meu tempo e ainda joga e o Tó Neves, com 33 anos, um jogador fabuloso, senão o melhor do FC Porto, anda ali a medir forças com o Pedro Alves”.
E, afinal de contas, Vítor Hugo acha que atingiu o que queria: “Tinha uma meta. Quando deixei de jogar era campeão do Mundo e da Europa em título, havia ganho tudo a nível de clubes e selecções, havia sido o melhor marcador do campeonato português, de campeonatos europeus e mundiais de diversos escalões e logrado algo que só o Jorge Vicente atingira, pois também fui campeão em Itália. Acho que não havia mais nada para ganhar, excepto uma carreira de médico dentista em que sempre investi muito”. Não se podem fazer comparações, mas entre tirar e marcar um golo, o dentista não tem dúvidas: “Não existe nada como marcar um golo. Acho mesmo que o Mundo seria melhor se todos tivéssemos, uma vez na vida, algum tipo de vivência desportiva”.
De entre os muitos belos momentos que construíram a carreira de Vítor Hugo, que ainda hoje é ídolo de crianças que nem sequer o viram jogar, o famoso “golo de colher” ficou na retina de milhões. Uma jogada “baseada em algo que vi o Livramento fazer, e na qual ele virava as costas ao guarda-redes, levantava a bola e rematava”. Mas “como entre os capazes há sempre os mais atrevidos”, acrescenta, o “menino de Espinho” decidiu “fazer uma adaptação e passar a marcar golo, levantando a bola por detrás da baliza”.

Um jogo a pedir desculpa a Livramento
Quando assumiu o hóquei em patins como modalidade favorita, Vítor Hugo elegeu Livramento como o seu primeiro grande ídolo. Quando era mais novo olhava atentamente o que o “seu craque” fazia. Apesar da “décalage” de idades, ainda se cruzaram como adversários.
“Lembro-me que jogava nos seniores da Académica de Espinho, apesar de ter de juvenil, e de termos defrontado o Sporting”, A alegria de defrontar Livramento dilui-se com o desejo de jogar bem, pelo que, no meio da aplicação, “dei-lhe uma porrada e depois passei o jogo a pedir desculpa. Afinal, é sempre complicado deitar abaixo um ídolo”, recordou.

Ir a Alvalade e regressar com um paralelo no colo
A rivalidade entre o FC Porto e o Sporting estendia-se ao hóquei patins e, muitas vezes, a vitória dos Portistas traduzia-se na necessidade de atravessar o relvado do estádio e sair pela porta 10 A”. De entre muitas histórias de situações algo complicadas por que passou em alguns pavilhões, Vítor Hugo recorda-se de uma que teve Alvalade como palco:
“Lembro de irmos num carro particular para a Estação de Santa Apolónia e de várias pedras terem caído sobre o carro quando paramos no semáforo junta da Churrasqueira de Alvalade. O dono do carro, com tanto medo como nós, arrancou ainda com o sinal vermelho, mas não me livrou de chegar à estação com um paralelo no colo e com o cabelo cheio de vidros partidos”.

Hospedados em Milão para fugir ao buzinão
Em 1986 o FC Porto sagrou-se campeão europeu e Vítor Hugo recorda esse jogo em Novara como o mais marcante: “Estivemos a perder 5-1, mas vencemos por 7-5 e fomos campeões. O jogo não acabou porque os adeptos italianos atiraram rolo de rolos de papel para dentro da pista, pelo que o árbitro acabou com o jogo três minutos antes da hora”. Mas, ainda antes do encontro, Vítor Hugo recorda-se da opção de a equipa ficar alojada em Milão: “Sabíamos que anteriormente a Sanjoanense ou o Sporting tinham ficado em Novara, mas que na noite anterior ninguém dormiu porque os carros não pararam de passar e buzinar à porta do hotel. Ainda aquando da inauguração da Casa do FC Porto em Espinho (Janeiro/2000), recordei este episódio com o Presidente Pinto da Costa, que também foi connosco”.

Contrariar o “treinador-falador” da Sanjoanense
Muita da fama do FC Porto que dominou o hóquei em patins português na dedada de oitenta advinha dos jogos em que a equipa Portista dava a volta a resultados adversos. “Recordo-me de um jogo em São João da Madeira em que estivemos a perder por 5-0 e vencemos por 6-5”. Foi um momento inolvidável, ainda mais, lembra Vítor Hugo, “porque no ano seguinte o novo treinador da Sanjoanenese disse que uma equipa sua nunca perderia um jogo depois de estar a ganhar por 5-0, como acontecera com o seu antecessor. Pois bem, nesse ano estivemos a perder por 6-1 e vencemos por 7-6. São dias que jamais esquecerei”.

Em Montreux um golo de ponta a ponta
Foram centenas os golos que marcou pelo FC Porto e pela Selecção Nacional, mas há um, obtido numa partida ante a Itália, no Torneio de Montreux, que Vítor Hugo nunca esqueceu. “Lembro-me que sofremos um penalti e um jogador nosso foi expulso. Ora, como na altura um cartão vermelho mostrado a um jogador significava que a sua equipa ficava em inferioridade numérica, passámos a estar quatro contra cinco. Pedi para ser substituído, mas foi-me dito para aguentar, pelo que fui o primeiro a chegar à nossa baliza. Acontece que o Domingos Guimarães defendeu o penalti, eu fiquei com a bola e fui por ali abaixo, passando todos os italianos, incluindo o Cupisti e marquei”.

“Pensava que em 2000 andaríamos em naves o que daria jeito para ir de Espinho ao Porto”
Will Smith, o “self-made-man” de Hollywood, canta num dos seus inúmeros mega-sucessos que “um homem não deve encarar o futuro sem antes conhecer o seu passado”. Antes de falar no novo século, Vítor Hugo recorda o que os últimos 100 anos lhe deixaram na memória.
É complicado falar de algo que ainda nos está muito próximo, mas em termos políticos e sociais, acho que a queda do Muro de Berlim me marcou bastante e irá perdurar por muito tempo como algo de extraordinariamente importante”. Sentado na cadeira do seu consultório de dentista, extrai mais um acontecimento marcante do século que morreu: “A nível nacional, e apesar das minhas recordações serem apenas ligeiras, o 25 de Abril terá sido o momento mais importante para os portugueses”. Sobre este caso em particular, “a ténue idade que tinha na altura não me permite ter hoje muitas recordações , mas ainda assim lembro-me bem de se falar na Revolução dos Cravos e do papel dos estudantes, que na altura tinham um peso na sociedade bem diferente daquele que possuem actualmente”.
Encerradas as memórias dos 36 anos que somou no século XX, Vítor Hugo olha para o que se segue com a desconfiança de quem viu expectativas defraudadas: “Quando era mais novo julgava, e desenhava na escola, que no ano 2000 andaríamos em naves, o que, diga-se, daria muito jeito para ir de Espinho ao Porto”, afirma com a “traquinice” com que, nos rinques, ludibriava os adversários.

“Esta modalidade dá muitos tiros nos pés”
Ainda assim, Vítor Hugo nunca achou que o ano 2000 fosse o início de algo completamente diferente: “Era de opinião de que as grandes alterações seriam apenas ao nível dos transportes, mas isso talvez se deva à minha enorme paixão por carros. Imaginava-me a comprar uma nave e ir para o Porto, voando por Valadares e Gaia. Daria muito jeito nos tempos que correm…”.
Mais a sério, acha que “a evolução tem sido significativa, mas os resultados não são nem de perto, aquilo que se perspectivava há cerca de trinta anos”. Por isso considera que “se deve dar tempo ao tempo”. Todavia, acha urgente, e deseja muito, que o século XXI seja o palco para essa novidade “que resolva o problema do HIV”. Uma preocupação que advém, igualmente, do “facto de exercer uma profissão de risco e de se tratar de uma doença terrível”.
Formulados desejos que têm a medicina dentária como ponto de partida, Vítor Hugo fala de outra paixão: “Desejo grandes melhoras para o hóquei patins”, O presente é já, por si, abundante em motivos de preocupação: “É com desagrado que assisto ao desinvestimento em Itália e sinal disso mesmo é a presença de jogadores italianos no nosso campeonato. É porque algo está mal”. Mas, não é só a situação em Itália que preocupa Vítor Hugo: “Não vejo, num futuro próximo, surgirem jogadores que possam continuar a motivar as pessoas a deslocarem-se aos pavilhões. O próprio jogo e as alterações às regras contribuíram para esta situação. E depois, esta modalidade dá muitos tiros nos pés”, afirma.
 
T

Timofte 2-3

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–“mais do que o hóquei só amo o FC Porto”,

\"Acho mesmo que o Mundo seria melhor se todos tivéssemos, uma vez na vida, algum tipo de vivência desportiva”.



Um senhor
 
H

hast

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Jorge Araújo

A imagem pública de Jorge Araújo é a do treinador de basquetebol personalizado e interveniente. Ligado ao FC Porto durante 17 anos, ganhou alguns títulos e perdeu outros. Um dia, entendeu que era tempo de deixar as Antas e partiu por outros caminhos: “De um ponto de vista inteligente, penso que nos apercebemos todos que se estava a encerrar um ciclo”.
Militante comunista, pós-25 de Abril, quando se fartou de ter dúvidas, bateu com a porta:” Verifico que os sinais que fui detectando na realidade dos países comunistas e que originaram a minha saída do PC são os mesmos que levaram à recente manifestação de Seattle (30 de Novembro de 1999) e que estão na base de 18 milhões de desempregados na Europa”.

“Andei 15 anos no interior do Partido Comunista cheio de interrogações…”
Jorge Araújo, nasceu no coração de Lisboa, no Outono de 1942, quando a guerra ainda assolava a Europa e em Portugal se vivia um período de grande austeridade. Passou a meninice entre o Bairro Alto, onde se desenvolvia a actividade comercial do pai, e a Rua da Paz, nas traseiras da Assembleia da República, brincando a organizar corridas e a jogar ao botão com a rapaziada lá da rua.
Filho de galegos – “a minha mãe era modista e o meu pai ajudava o meu avô numas tabernas que ele possuía ali para os lados da Rua da Rosa” -, foi criado com muito sacrifício e passou mesmo alguns períodos na Galiza, com o pai e o avô, em tarefas agrícolas. Mais tarde, estudou no Liceu Passos Manuel e veio a licenciar-se em Educação Física.
Treinador de basquetebol de méritos reconhecidos, tornou-se numa das figuras mais prestigiadas do desporto português.
Foi militante comunista, com relevância, e deixou de o ser pelos mesmos motivos que o fazem indignar-se com a chamada globalização capitalista: “Verifico que os sinais que fui detectando na realidade dos países comunistas e que originaram a minha saída do PC, são os mesmos que levaram à recente manifestação de Seattle e que estão na base de 18 milhões de desempregados na Europa. Andei 15 anos no interior do Partido Comunista, cheio de interrogações e vejo agora com ironia que uma nova corrente, mas de sinal contrário, procura convencer-nos que o caminho para a sociedade ideal tem que ser o mesmo… Mas, apesar de tudo, sinto-me confortado ao verificar que num país e numa sociedade que se tornou modelo universal é possível mostrar indignação. Isto significa que aí, mais à frente, vai cair algures outro muro… Só que desta vez não é o “muro de Berlim”, vai ser do lado de cá e vai haver uma implosão semelhante à que houve no mundo comunista”.

Lisboeta de gema assimilado pela cultura nortenha
Jorge Araújo chegou ao Porto com 36 anos, uma parte da vida percorrida e alguns títulos como treinador, na bagagem. Lisboeta nado e criado na “capital do Império”, aculturou-se ou, como ele diz, foi assimilado: “Não posso renegar as minhas origens, mas sou forçado a salientar que o facto de ter sido sempre bem tratado no Porto, numa altura em que o meu posicionamento político não fazia de mim uma pessoa especialmente desejada, contribuiu para me sentir assimilado por uma cultura nortenha que me levou, inclusive, a ficar por cá e a procurar um posicionamento de árbitro entre duas realidades distintas… a daqueles que estão a Sul do Mondego e a dos que vivem e trabalham do lado de cá. Neste capítulo, a envolvente do desporto e o FC Porto foram determinantes”.
Narcisista, incapaz de construir ídolos, cedo se virou para dentro em busca de uma personalização que nos primeiros tempos raiou o autoritarismo. Mas, o correr dos anos e o adregar dos títulos alteraram-lhe o carácter, tornando-o mais receptivo: “Apercebi-me de que para ser líder tinha que começar por gostar de mim e ganhar autoconfiança. Como treinador, cheguei quase a ser ditatorial, mas depois fui inflectindo o rumo e hoje preocupo-me muito com a opinião e a participação dos outros”.
Mudanças de conceitos e de ideais políticos, que não roubaram a Jorge Araújo o protagonismo de que merecidamente desfruta, antes tornaram-no naquilo que sempre quis ser, um intervencionista convicto: “As funções que exerço como Secretário de Estado do Desporto são as mesmas que já vinha desenvolvendo nos últimos anos, embora no plano informal. Trata-se de continuarmos a abordar questões que a ambos nos têm vindo a preocupar e que respeitam às expectativas que temos quanto a problemas concretos do desporto nacional. A tutela de Fernando Gomes, é também uma garantia de algo vai mudar”.

Escritor de desporto e admirador de Che Guevara
Para além da sua actividade como treinador de basquetebol, Jorge Araújo tem mantido ao longo dos últimos 17 anos uma actuação formativa e pedagógica consubstanciada na publicação de oito livros dedicados à análise do fenómeno desportivo e ao ensino, com especial incidência na área do basquetebol.
O seu último volume “O Treinador na Empresa”, colocado nas bancas em meados deste ano (1999), define porém a passagem a outro nível de actuação, a formação de quadros superiores de empresas: “É o aproveitamento dos meus conhecimentos como treinador e gestor de recursos humanos, na área formativa de empresas de alto rendimento”.
Uma faceta intelectual e mesmo didáctica, que reflecte a forma de pensar e agir de um homem cheio de contrastes: “Acho que o Che foi uma figura marcante deste século. São poucos os casos de pessoas que se tornaram mitos e que ainda hoje quando pensámos no seu trajecto nos surpreendem… Che Guevara lutou para ter o poder na mão e, quando o alcançou, teve o desprendimento de voltar atrás e recomeçar uma luta que ninguém supunha que ele ainda estivesse na disposição de travar… É uma figurada qual não me desprendo”.

Segredos
O “doping” ao Domingo de manhã
Esta história é verídica. Saborosa como poucas, retracta com fidelidade o espírito da década de cinquenta, recuando aos anos alegres e ainda despreocupados em que o jovem Jorge Araújo era um emérito praticante de Basquetebol.
“Comecei a jogar ainda muito jovem, no Nacional de Natação clube que ficava perto da minha casa, em São Bento, e onde existia uma cultura muito especial de ‘doping’… Ninguém ia para o jogo sem beber duas ginjinhas! Como os nossos jogos eram ao Domingo, a maioria deles às nove horas, imagine-se o que era encontrar um buraco aberto às oito horas da manhã, em Lisboa, para mamarmos as ginjinhas… Tínhamos um grupo giro de que faziam parte, entre outros, o José Luís (mais tarde campeão nacional e várias vezes internacional), o José Constantino, o Paraíso, o Ângelo e lá íamos todos, nos transportes públicos da época, à procura de ‘doping’…Recordo-me que umas vezes resultava e outras não…Bons tempos esses”.

Treinador e jornalista “metalúrgico” de apelido
Os anos passaram e a capital ficou para trás. Jorge Araújo viveu intensamente o 25 de Abril e é em Coimbra, no ambiente efervescente da pós-revolução, que se desenrola uma das fases menos conhecidas da sua vida: “Em Setembro de 1974, era então treinador do Clube Académico de Coimbra, fui convidado para me filiar no Partido Comunista, algo tão relevante que me fez perguntar: ‘Mas será que sou digno?’. É que para mim, nesse tempo, ser militante do PC era qualquer coisa de superior, tal a dimensão e o patamar em que colocava-mos as pessoas que pertenciam ao partido e mais o esforço e os sacrifícios passados por alguns deles na clandestinidade. Foi isto que veio dar origem a que, durante os primeiros tempos de filiação, sentisse a necessidade de expiar a minha ‘impureza’ fazendo coisas que à luz dos dias de hoje são difíceis de acreditar que passaram comigo, mas a verdade é que aconteceram mesmo. Como escrevia bem, passei a colaborar no jornal ‘O Diário’, que era propriedade do partido Comunista, fazendo a cobertura do movimento sindical, greves de empresa, etc., e, entre os trabalhos que fiz, um deles foi a assembleia-geral do Sindicato dos Metalúrgicos. Não me lembro bem do que escrevi, nem me parece que tenha sido demasiado importante, o que é certo é que a partir desse dia, sempre jogávamos em Coimbra havia alguém que se colocava nas minhas costas e que passava o tempo a gritar: ‘Filho da p**a, metalúrgico!”. Uma situação complicada para o estatuto de um treinador, e inimaginável na actualidade, mas foram episódios destes que me caldearam e não os passei só em Coimbra… Em Sangalhos, já então treinador do FC Porto, corria o final da década de 70, havia alguém atrás do nosso banco que sempre que eu pretendia levantar-me punha as mãos nos meus ombros e dizia: “Senta-te comuna!’... Nunca me virei para trás, mas se esse individuo ainda for vivo gostava de o conhecer, acho que seria interessante conhecermo-nos agora…”.

E um dia disse adeus ao FC Porto
Um dos momentos mais difíceis da vida de Jorge Araújo passou-se no final da época de 1997/98 quando decidiu deixar o FC Porto, pondo fim a uma ligação de 17 anos, coroada com cinco títulos nacionais, seis Taças de Portugal e duas Supertaças.
Homem de personalidade forte, custou-lhe deixar o clube que o fez “Dragão de Ouro”. Mas hoje, quando olha para trás e se dispõe a falar sobre o assunto, reconhece que era chegada a hora: “Há mágoas que guardo só para mim, não falo delas… Já havia um cansaço mútuo e não estavam reunidas as condições mínimas para continuar no FC Porto. De um ponto de vista inteligente, penso que nos apercebemos todos de que se estava a encerrar um ciclo. Foi uma decisão importante para a minha vida e para a minha carreira, uma fronteira que ultrapassei… Se não o tenho feito nessa altura nunca viria a passar pela Madeira, de que tanto gostei, nem a agarrar o projecto que estou a desenvolver na Ovarense Aerosoles. Há decisões que se tomam uma vez na vida e a de sair do FC Porto, naquele exacto momento, foi uma delas…”.

“Gostava que a humanidade atingisse o ponto de equilíbrio”
Jorge Araújo tem uma memória história de quase meio século. Viu o Mundo transformar-se e viveu intensamente algumas dessas alterações. Engajado desde cedo para a problemática social interiorizou experiências, desfez ilusões e conquistou para si próprio o direito de dizer: basta!
Colocado perante o dealbar de um novo século, o Homem sobrepôs-se com naturalidade ao desportista e ao treinador. As primeiras preocupações, os primeiros recados fora de índole sociopolítica: “Gostava que a humanidade atingisse um ponto de equilíbrio. Que não passassem a vida a dizer-nos que para se chegar ao nível de estabilidade que ambicionámos é preciso que milhares e milhares de pessoas sejam trucidadas pelo caminho… Isto tem que parar! O comunismo eclodiu no início do século que agora finda, desenvolveu-se e morreu dentro do mesmo século. Agora vem aí a globalização e procuram convencer-nos que vai ter de voltar a ser assim… a desgraça de alguns para a felicidade de outros. Hei-de manter-me na minha indignação e na minha insubmissão e, enquanto eu não quebrar, pode ser que várias manifestações como a de Seattle aconteçam e tudo isto se reequilibre. É esse o meu grande desejo para o século XXI”.
 
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hast

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Virgílio Mendes

Virgílio Marques Mendes foi um Dragão dos quatro costados, mas foi como leão que ficou na história – leão de Génova, herói de um Itália-Portugal em que a equipa das quinas perdeu por 4-1, mas ganhou um defesa-direito para os 17 anos que se seguiram: “Foi o jogo da minha vida. Era a estreia. Tinha que marcar o Carapelese, que era muito rápido e tinha muita técnica, mas eu tinha capacidade de recuperação e velocidade, e ele não conseguiu fazer nada”. Foi considerado o melhor em campo; a Imprensa trouxe “em letras gordas” os elogios à exibição daquele Portista, “a maior bofetada” que podiam sentir os que, nos clubes grandes de Lisboa, dominavam o futebol. O leão de Génova enervava-se até à lágrimas a falar desses tempos. “Quem mandava era o Benfica e o Sporting. Eles agora esquecem-se do que a gente passou e a mocidade não sabe como era isso de já estarmos a perder por 3-0, quando passávamos a ponte. Eles metiam a bola com a mão, em fora-de-jogo, para eles, tudo valia. Estava tudo bem cozinhado, porque eles é que mandavam”.
Por duas vezes provou a sensação de ganhar um campeonato, em 1956 e 1958. E acreditava que teriam sido mais, se o clube tivesse, então, um presidente como o actual: “Pinto da Costa ensina-os a todos! Esfolam-se todos para serem campeões!”

Foi o jogo da minha vida
A raça que punha no jogo permitiu a Vergílio contrariar o poderio dos emblemas lisboetas, cuja simples recordação lhe rouba a serenidade habitual: “Estive 17 anos na selecção e era chamado porque, naquela altura, não havia pai para mim. Consegui fazer 39 jogos, e era um ou dois por ano. Era bom, não ia lá por favor. Não era fácil, porque era do FC Porto, mas o treinador tinha que se vergar, porque era o melhor”. Natural do Entroncamento, esteve quase a ser do Benfica, mas acharam-no muito “magrinho”, não gostaram do “cabelo grande” e despediram-no com um vago “voltas cá noutra altura”. Já não houve hipótese, porque, entretanto, apareceu o FC Porto que quis vê-lo à experiência: “Vim treinar à Constituição com os que já cá estavam, como Araújo, Oliveira Dias, Romão…. Após a primeira sessão, disseram-me: “O menino tem jeito para isto”. Virgílio era então um avançado centro… roidinho de saudades dos pais: “ Das cinco vezes que treinei aqui – os treinos não eram diários -, meti-me no comboio e fui lá ter com eles”. De todas as vezes o foram lá buscar. À 5ª vez, “o presidente (Cesário Bonito), pôs-me um papel à frente para assinar e deu-me três contos (15 €!), em notas de vinte”. Fez-se um jogo entre dragões e Ferroviário, e a transferência consumou-se. “Fiquei preso ao clube até hoje”.

Estreia por acaso
Começou então a aventura no FC Porto, nada fácil, no início. Os companheiros ajudavam, mas o treinador, o húngaro Szabo, “tinha umas maneiras de falar que, se fosse por isso, não estava hoje no clube”. Mas ficou e estreou-se, de forma inesperada, com Scopelli: “O FC Porto jogava na Póvoa com o Braga. Eu jogava nas reservas e pedi a um director para ir no autocarro, para ver o jogo, mas depois faltou um jogador, mandaram o massagista chamar-me e Scopelli disse-me: ‘Equipe-se’. Joguei a defesa-direito e fiz um jogo excepcional. Ganhamos 6-1, comecei a jogar e, um mês depois, estava a ser chamado à selecção”.
A estreia marcou a mudança definitiva de posição. “Não gostei assim muito, mas a gente tem de ir para onde o treinador mandar”. E Scopelli tinha razão. “Depois, fui defesa-direito toda a vida”. Virgílio orgulha-se da garra com que entrava em campo. “Eu era bom, tinha amor à camisola do FC Porto e da selecção”, conta, determinado: “Eu sozinho jogava contra 11, porque sabia estar dentro do campo. Sabia quando tinha que me antecipar, quando tinha de dobrar, de fechar… havia de me ter visto jogar. Hoje não vejo nenhum assim”.
Quando, em 1956, o FC Porto reuniu uma série de jogadores com estas características, mais o técnico Yustrich, o campeonato ficou na Constituição. “Naquela altura veio um treinador que revolucionou o futebol dentro do FC Porto e, com aquele querer dele, pôs-nos ‘au point’, em termos físicos. Tínhamos bons valores mas éramos uma equipa de combate, com força e, muitas vezes, era por isso que ganhávamos os jogos: era o Miguel, Monteiro da Costa, Pedroto – era um filósofo -, Jaburu – ui, que jogador! -, Hernâni, Teixeira, Perdigão, e Pinho, o guada-redes, que, mesmo de baixa estatura, fez uma época extraordinária”. Yustrich era também um disciplinador: “Tínhamos horas de chegar aos treinos, de chegar ao Lar – que ele montou na Praça das Flores e onde não nos faltava nada; já tínhamos estágio, a partir de quinta-feira e até segunda, e nem ao Domingo, depois dos jogos, nos deixava sair. Não deixava que nos faltasse nada, nem que ninguém se chegasse à nossa beira!”.
Tais métodos não agradaram a toda a gente. O Técnico “mandou embora o Barrigana, o Carvalho e o Corcel”, os sócios ficaram divididos, “e por isso deixámos de ganhar alguns campeonatos”.

Quinze minutos à espera para ser campeão
Em 1958, o FC Porto provou novo título, disputado até ao último minuto da última jornada, depois de uma vitória, por 3-0, sobre o Torreense, e de uma longa espera no balneário: “O Benfica jogava com a CUF e entrou em campo 15 minutos mais tarde, para saber o nosso resultado; o árbitro chamava-se Calabote e marcou quatro penaltis contra a CUF, cujo treinador mudou de guarda-redes, ao intervalo. Marcaram-lhes cinco golos, e ganhámos o campeonato pelo goal-average. A mocidade não sabe o que sofremos, ali no balneário”.
A afirmação na Antas e na selecção, à força de tal vontade e do “gosto por aprender”, abriu a Virgílio as portas de muitos grandes clubes. Sabe-os de cor. “Benfica, Sporting, Real Madrid, Milão, Juventus, Celta de Vigo e Corunha” fizeram-lhe propostas, mas nenhum o seduziu. “A esta hora podia já não estar neste Mundo, e assim estou neste mundo que é o FC Porto”. Porquê? Pergunta-se-lhe, já que essa não seria uma opção vulgar, nos tempos actuais. “O FC Porto é grande em tudo. Nós, que estamos cá dentro, é que sabemos. Vim para aqui com 19 anos; vim há 53 anos, e só tenho a dizer bem”.

Um jogador faz-se com vontade
Virgílio fez-se defesa-direito em hora e meia, o tempo de jogar contra o Braga na estreia, e o que foi preciso para anular o avançado-centro que se fizera, desde miúdo e por conta própria, no Entroncamento. É uma história que não se cansa de contar aos miúdos que tem sob a alçada, os vinte que se fazem futebolistas no Lar Juvenil do FC Porto: “O que lhes digo é que sejam iguais ou melhores ainda, como atletas, mas também como alunos. Eu só fiz o exame da quarta classe, porque os meus pais eram pobres e éramos cinco filhos. Tinha duas irmãs, a quem roubava as meias grossas e desafiava os miúdos para irmos jogar a bola. No dia seguinte, também era eu que levava as raquetadas da professora, por ter desafiado os outros, mas foi aí que me fiz jogador. Hoje, é muito diferente”.

Nunca jogou de caneleiras
“Dentro do campo, nem que estivesse o meu pai a estremo-esquerdo, naquela hora e meia, não seria o meu pai”. Virgílio admite, sem reservas, que era “um endiabrado”, quando tocava a defender a equipa, fosse a das Antas ou a da selecção. Num caso ou noutro, conta que nunca usou caneleiras. Jogava na antecipação: “Gostava de jogar com a camisola por fora dos calções, à vontade, e nunca joguei de caneleiras. Antes que me dessem, dava eu neles. Aos estrangeiros – e às vezes, aos portugueses, até lhe pisava as mãos, para eles fugirem”. E não olhava mesmo ao adversário. Era adversário e pronto: “Uma vez, num FC Porto-Belenenses, que ganhámos por 6-1, ao Matateu, dei-lhe uma por baixo, que ele foi parar à pista de ciclismo. ‘Matei-te’, disse para comigo, mas ele voltou a entrar, e fez o 6-1. Parecia que o tinham picado! Era um grande jogador; para mim, melhor que o Eusébio”.

O amigo Caiado
Virgílio protagonizou com o benfiquista Fernando Caiado um caso de disciplina que fez história. Foi ele o primeiro a ver-se suspenso, por agressão, até à recuperação do jogador que agredira. Muitos anos depois, a pena voltou a ser aplicada a um outro Portista, Paulinho Santos, por agressão a um jogador da Luz. Mas o caso de Virgílio e Caiado foi assim: “Falava muito com ele, na selecção. Quando foi (do Boavista ) para o Benfica, ficou cheio de prosápia. Dei-lhe na hora em que ele já ia lançado. Ela (a bola) foi dividida, e zás! Aos cinco minutos, fui tomar banho, e fiquei uns meses sem jogar. Passado algum tempo, pedi-lhe desculpa, e somos amigos. Aquilo é que era um jogador, o Caiado. A médio, era de uma limpeza! Ui, o que ele jogava!”Hoje encontram-se, de vez em quando, nas bancadas do estádio do Salgueiros, onde ver o futebol lhes agrada, e não faz sofrer tanto como se estivessem nas Antas ou na Luz, respectivamente

A fruta e a tarde negra da inauguração das Antas
Nem todos os tempos no FC Porto foram fáceis. Uma tarde de má memória foi a da inauguração do Estádio das Antas: “Quando o Benfica vinha jogar ao Lima ou à Constituição, era sempre tabela três, ganhávamos. Mas vieram à inauguração das Antas e deram-nos 8-2. Estava aquilo cheio, os sócios bravos, a perguntar se estaríamos bêbados… Qual bêbados, qual quê? Calhou… parecia que estávamos com o cesto roto”. Mas bêbado é que não estava, porque, em dia de jogo, tinha uma dieta rígida : “Nesse dia, fomos comer à Abadia. O restaurante era bom mas eu só comi fruta”.
E nem sequer o fez como medida de excepção. Pelo contrário, era essa a ementa dos dias de jogo: “Nunca comia senão fruta: comia maçã, banana… Dizem que faz bem comer, mas eu chegava lá, leve, depois de fazer a digestão, e comia-os a todos”.
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Virgílio Mendes faleceu a 24 de Abril do presente ano e a Revista dos Dragões prestou-lhe uma singela homenagem.

«Leão de Génova», Dragão da eternidade
Morreu Virgílio (81 anos), antiga glória, jogador e homem de um só clube, o FC Porto
Virgílio (Marques Mendes, de nome completo) continuará a ser uma das maiores referências do Dragão, quer como antiga glória desportiva, quer como verticalidade e generosidade. Eternamente, tal como os diamantes. Porque disso se tratava o grande «Leão de Génova»: Uma pedra preciosa, daquelas muito raras, em que valores como a honra, a lealdade, a fidelidade e a paixão são o que mais ordena. Enquanto jogador, foi enorme e não vendeu o ser futebolístico por nada, nem por cifrões… «Trocar de camisola apenas por causa do dinheiro que estava em jogo, se não era violentar o coração e o clube, era, pelo menos, aceitar viver como um mercenário», disse um dia. Como homem, igual postura. A lenda partiu a 24 de Abril – que data tão especial – vítima de doença. Tinha 81 anos e a sua última tarefa ao serviço do campeão era a de «guardador» de talentos na casa do Dragão. Como não podia deixar de ser.
Nascido no Entroncamento, não era portista desde pequenino. O que acentua mais ainda o seu portismo. Recusado por um clube lisboeta, foi detectado e indicado pelo húngaro Joseph Szabo ao FC Porto. Nessa altura Virgílio jogava na posição de avançado. No reino azul e branco passou a actuar no meio-campo e, mais tarde, sob a batuta técnica do argentino Alejandro Scopelli, fixou-se a defesa-direito. Nunca alguém avançou a recuar, isto é, a sua evolução e carisma cristalizaram em torno do reposicionamento no relvado, trocando por miúdos, quanto mais atrás melhor. Abriu-se, então, a janela do reconhecimento e uma numérica fascinante: 15 anos ao serviço portista (o seu único clube, portanto), 347 jogos realizados, seis golos assinados. No palmarés inscrevem-se dois Campeonatos Nacionais (55/56 e 58/59) e duas Taças de Portugal (55/56 – curiosamente a primeira do grémio – e 57/58).
Reflexo do percurso brilhante, contabilizou 39 internacionalizações. E foi logo no jogo de estreia pelas quinas (em 1949), no Itália-Portugal, que conquistou o estatuto de «Leão de Génova». A selecção nacional saiu derrotada por 4-1 da cidade portuária italiana, mas para a história ficou um nome: Virgílio, o defesa que «apagou» a estrela transalpina Carapelese, famoso extremo-esquerdo manietado pelo trabalho gigante do português. O algodão não engana e mesmo em cenário de derrota, houve aplausos unânimes para o novo e promissor jogador luso. Um leão para Génova, um Dragão para sempre. E, já agora, um apetite universal, visto que despertou a cobiça de grandes clubes, entre os quais Real Madrid e Barcelona. A ambos Virgílio disse «não», repetindo a palavra dois anos depois ao Celta de Vigo, apesar da proposta milionária de 500 mil pesetas para assinar e do ordenado de 15 mil pesetas.
Foi a abordagem galega que suscitou a tal declaração de circunstância, já recordada por nós, e que imprimiu coerência total a Virgílio, seja como profissional desportivo, seja como personalidade humanista. De facto, nunca deixou o FC Porto e com ele conviveu até ao fim. A carreira azul e branca terminou em 1962 (o último jogo pelas quinas foi o Jugoslávia-Portugal, em 1960) e chegou a treinar a equipa principal em 1966, em substituição de Flávio Costa. Posteriormente assumiria funções no Lar Juvenil do clube, hoje denominado Casa do Dragão, a residência oficial dos atletas mais jovens que não vivem no Grande Porto. A glória certa no posto certo, fonte luminosa de inúmeras histórias e motor gerador de inspirações várias. O corpo de Virgílio esteve presente em câmara ardente na capela da igreja das Antas, seguido de missa de corpo presente, e foi a enterrar no cemitério nº1 da Póvoa de Varzim.
In «Revista dos Dragões» Março/Abril de 2009 – 02/07/2009
 

jsm

Tribuna
29 Abril 2007
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Obrigado hast por esta evocação maravilhosa do grande Virgílio!Muito me falava do meu pai dele. Aprendi a respeita-lo a ter por ele uma admiração sem limites. è pena o pessoal mais novo não conhecer de cor estes nomes de oiro. Virgílio tal como o Hernâni, Pedroto, Pinho, Teixeira, Jaburu, Perdigão, Monteiro da Costa e tantos outros foi do que melhor e mais puro o nosso clube teve. Alí havia amor genuino à camisola.Amor ao clube. E eram tempos dificílimos, tal como o próprio Virgilio o diz, (quando passavamos a ponte já estavamos a perder 3-0...!). Foi no sofrimento destes homens que se forjou o nosso grande e imortal clube. Bem hajam!
 
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Timofte 2-3

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“O FC Porto é grande em tudo. Nós, que estamos cá dentro, é que sabemos. Vim para aqui com 19 anos; vim há 53 anos, e só tenho a dizer bem”.


Grande Homem.
Bem haja Leão de Génova, espero que continue a assistir aos jogos do nosso Porto aí de cima
 
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hast

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António Oliveira

Igual a si próprio, António Oliveira falou do século XX à sua maneira: que o 25 de Abril era inevitável, antes ou depois da data histórica, que a dinâmica portuguesa é qualquer coisa de imparável e, claro, que o FC Porto é parte integrante da sua vida. Livre-pensador, não hesita em proclamar: “Estou filiado no PSD, apoio o PS e… sou comunista!”. Do seu futebol não falou muito: “Eu, fazia o que podia. O Alves era um génio”.

“Em Roterdão dei uma estalada na bola”
No fim de uma manhã envergonhada, com sol escondido e horizontes ameaçadores, António Oliveira abordou o século XX com o pragmatismo com que, um dia, pôs Jardel no banco de suplentes. E, como nunca foi homem de se refugiar em frases calculadas e cautelosas, lembrou-se de um facto curioso: “Quando fui para Penafiel, jogar e treinar, roubei para aí metro e meio de cada lado do campo, que ficou bem mais estreito. Claro que empatámos a zero com o Benfica e o Porto; quem não tem cão caça com gato. E enchemos o campo de areia, a bola andava e estava sempre no meio campo… Bons tempos, com jogos sofridos, muito diferentes daquilo que se passou no FC Porto, que se deu ao luxo de virar um resultado em S. Siro”. E riu-se: “Aquilo eram camionetas e camionetas de areia, o campo já era pelado, não se notava muito e fez-nos muito jeito”.
O homem é mesmo assim. Raciocínio rápido, ideias muito próprias, falando a sério quando tal se justifica: “O 25 de Abril? Podia vir mais tarde, podia até ter vindo mais cedo, era inevitável e foi para nós, portugueses, uma coisa sublime, o grande acontecimento do século. Mesmo que eu ache, por exemplo, que a ponte podia continuar a chamar-se Oliveira Salazar, foi ele que a mandou construir e se calhar, daqui a cem anos, volta a adquirir o nome original. Eu sei lá. Claro que o povo deixou de estar oprimido, amordaçado. Eu estava na tropa, no CIC, depois de ter estado no Trem Auto, em Lisboa. Lembro-me como se fosse hoje…”.
E como os momentos altos da sua carreira de futebolista de eleição aconteceram nesse período, lembrou-se de um jogo que quase passou despercebido: “A selecção foi jogar a Roterdão, contra o Feyenoord, era Mário Wilson o seleccionador. Ganhámos por 1-0 e eu marquei um dos melhores golos da minha vida: fintei toda a gente, em diagonal, fartei-me de andar com a bola e, a páginas tantas, como já não sabia o que havia de fazer, ‘dei-lhe uma estalada’ e ela entrou ao ângulo superior da baliza de Hiele. O Luís Aragonés viu o jogo, assinei pelo Atlético de Madrid e acabei por não ir para lá, porque só podiam jogar dois estrangeiros e os madrilenos tinham que se livrar do Ayala, coisa que não chegou a acontecer. Fui para o Bétis de Sevilha, como podia ter ido para outro sítio qualquer. É a vida”.
Na hora das lembranças, teve palavras de apreço para quem mais o marcou: “José Maria Pedroto, por motivos conhecidos, foi um homem que teve uma influência determinante na minha vida. Depois dele, Malcolm Allison, o inglês com quem trabalhei no Sporting. Pinto da Costa, João Rocha, Valentim Loureiro e Pimenta Machado foram, na minha opinião, os grandes dirigentes do futebol português no século XX, todos em actividade com excepção de João Rocha. Determinantes nos seus clubes, com particular relevo para o presidente do FC Porto, com quem mantenho uma relação muito especial. Pinto da Costa é um homem que, essencialmente, gosta de futebol, que nunca esqueceu algumas alegrias que lhe dei quando jogava. Mesmo que eu ache que… fiz o que podia, nada mais do que isso. Génio era o Alves, que arrastava consigo uma equipa. Era um líder que se afirmava a jogar, sem necessidade de falar muito. Bons tempos”.
António Oliveira tanto conta uma anedota como avalia uma obra de arte. Sente-se um homem do povo e consegue explicar coisas como esta: “Estou filiado no PSD, apoio o PS e… sou comunista! Isto é, gosto de viver bem, penso nos outros e gostava que tudo se distribuísse com maior justiça. E não tenho dúvidas em considerar Álvaro Cunhal uma das grandes personagens portuguesas deste século. Não esqueço Sá Carneiro, gosto de Mário Soares e de Jorge Sampaio, mas Cunhal, pela forma como sempre se conduziu, é uma figura muito especial. Agora, afastado da luta política diária, consegue uma unanimidade de opiniões rara na vida portuguesa”. Mais ainda: “Aliás, do ponto de vista político, a desgraça que está a ocorrer em Timor é a prova cabal de que num quadro global as questões já não se resolvem com uma única ideologia política”.
Lançado, deixou um aviso sentido: “Mas também não devemos branquear situações em nome da democracia. Há que melhorar a saúde, a educação, a própria prática desportiva. Mesmo assim, com estas dúvidas, claro que considero altamente positivos os últimos anos deste século, orgulhando-me de pertencer a um país que caminha a passos largos na boa direcção. Para mim, não quero nada. Nem ser treinador de futebol. Pelo menos para jᅔ.

Sporting – Dínamo de Zagreb – Tragédia e glória de um génio
29 de Setembro de 1982. O Sporting, onde António Oliveira era jogador-treinador, recebeu o Dínamo de Zagreb, tentando rectificar uma derrota (0-1) no jogo da primeira mão. Tratou-se de uma noite que ficou gravada a letras de ouro na história do clube e na carreira do profissional Oliveira, que marcou os três golos da partida e assinou uma exibição memorável. Mesmo assi,, tratou-se de uma jornada de tragédia e de dor para o jogador, que relembra acontecimentos velhos de quase dezassete anos: “O meu pai faleceu nesse dia e aconteceram coisas muito estranhas: Acordei às oito da manhã, bem contra os meus conhecidos hábitos, a tal ponto que o Fernando Festas, meu companheiro de quarto, abriu a boca de espanto. Disse-lhe que tinha sonhado – imagine – que teria falecido alguém da minha família! O Festas disse-me que era maluco, bebi água e adormeci de novo. Chegámos ao estádio a meio da tarde e perguntei ao meu irmão Joaquim se o pai estava bem. Disse-me que sim, que o tinha deixado havia poucos minutos na casa que eu habitava, na Quinta do Lambert. Desconfiei e telefonei para a minha mulher, que me disse que, lá, não estava ninguém. Muita gente à minha volta, ninguém me dizia nada e perguntei ao meu irmão se estava à espera que o jogo acabasse para me dar a novidade. Ele já nem disse nada…”.
Com o olhar no passado, Oliveira continuou a recordar: “Jogámos, marquei os três golos da nossa vitória e quem vir as imagens, pode reparar que ergui os braços ao Céu, pensando no meu pai. Na companhia do João Rocha, Sousa Marques e Manuel Fernandes, apanhei na manhã seguinte um avião para o Porto e, na noite anterior, sonhei que algo acontecera à minha mãe. E, de facto, sofreu um derrame cerebral, que a diminui até ao último momento. Quem é que me explica estas coisas?”.
E teve uma última lembrança, menos desagradável: “Quando resolvi ser substituído, depois da eliminatória estar resolvida, houve colegas meus que pensaram que queria receber os aplausos dos sportinguistas!”.

Acontecimento inacreditável em Penafiel
Entre o FC Porto e o Sporting, António Oliveira passou pelo Penafiel, a sua terra natal, onde jogou e treinou o clube local. Outros tempos, outros futebóis, com um acontecimento inacreditável e hilariante a marcar essa passagem: “Uma ocasião, estávamos aprender por 1-0 ao intervalo, escusando-me eu a dizer quem era o adversário e, muito menos, o nome do árbitro do jogo. Que, diga-se, nos estava a prejudicar de uma forma declarada. Nesse tempo, a equipa de arbitragem usava o gabinete onde eu trabalhava durante a semana, já na zona da cabine do Penafiel. De repente, alguém desatou a dar murros na porta – fechada – da zona dos árbitros, com uma voz a gritar: “estive dez aos na prisão, vou-me desgraçar, mas isto não pode continuar!”. E ouviu-se outra voz conciliadora: “Não faças isso, arruínas a vida, tem cuidado!”. Eu, a falar com os jogadores, não faço uma ideia exacta de como as coisas se passaram, aceitando que, neste final de século, tudo é bem diferente e nada se poderia passar de forma semelhante. Mas aconteceu”:
E, com um sorriso nos lábios e, de novo, a recordação de tempos perdidos: “Não sei se a encenação teve alguma influência, só sei que demos a volta completa ao resultado e acabámos por ganhar à vontade”.

José Maria Pedroto, o moçambicano e os segredos
Homem que o marcou profundamente, José Maria Pedroto ocupa um lugar muito especial na vida de António Oliveira, que nunca esquecerá o Zé do Boné, tinha uma relação com ele apenas possível pela forte personalidade dos dois homens e, já agora, pela sua condição de predestinados para as carreiras que escolheram. Na altura de escolher um episódio da vida do inesquecível treinador, Oliveira optou por um bem elucidativo: “Já depois do 25 de Abril, era o FC Porto campeão nacional, visitou as Antas um treinador moçambicano, que assistiu aos treinos durante um mês. No dia da despedida, foi ao gabinete de Pedroto logo pela manhã e eu estava lá, porque tinha o hábito e beber um café com ele. O visitante agradeceu muito as atenções que tinha recebido e pediu, timidamente: ‘Senhor Pedroto, qual é o segredo das vitórias do seu clube?’. Pedroto, muito sério, respondeu: ‘Meu amigo, se lhe disser, lá se vai o segredo e eu estou desgraçado, nunca mais ganho nada’. Juramento de silêncio total, o nosso amigo não ia dizer a ninguém. Pedroto, mesmo assim, fazia-se difícil: ‘Não sei, é muito perigoso. Não, não lhe posso dizer’.
Oliveira falava com o jornalista mas, de facto, tinha-se transportado para a manhã longínqua do Estádio das Antas: “Eu, de chávena na mão, estava suspenso da conversa e, claro, com uma vontade imensa de rir, porque conhecia Pedroto como poucos. Até que o mister resolveu-se: ‘Olhe, eu vou-lhe dizer, com todos os riscos envolvidos. Temos que ser mais forte que os outros!”.

“Que possam viver todos como eu para evitar chavões desnecessários”
Com uma segunda metade do século XX intensamente vivida, António Oliveira não parece muito preocupado com o que o futuro lhe possa reservar, ou porque confia em si próprio ou, se calhar, porque faz parte da sua maneira de ser encarar o dia-a-dia como uma coisa inevitável. Mas, como toda a gente, não deixou de confiar os seus desejos: “Para evitar chavões desnecessários e tantas vezes de mau gosto, repetidos até à exaustão, direi que gostaria que todos pudessem viver como eu vivo.
Desportivamente, contradições facilmente explicáveis: “Na minha modalidade, o futebol, claro que desejo a continuação das vitórias do FC Porto, o meu clube de sempre, ao que estou ligado de forma muito forte. Mas, se pensar em termos profissionais e na minha condição de treinador, terei que dizer que o maior desafio que se pode colocar a um técnico, em Portugal, é o de tentar contrariar uma superioridade que tem sido esmagadora, especialmente nesta década de fim século. Tarefa que não será fácil, porque o FC Porto está muito adiantado em relação aos seus concorrentes mais directos, com uma organização exemplar e uma mística quase indestrutível. Tenho a certeza de que as minhas palavras não serão mal interpretadas, como tantas vezes sucedeu, mesmo que isso não seja importante, por ter a noção exacta do que digo. E ninguém duvidará que o treinador que conseguir chegar ao Benfica, ao Sporting, ao Boavista, seja onde for e tiver êxito nessa tarefa, que considero quase ciclópica, será protagonista de uma proeza desportiva de grandes proporções. Mesmo que o cidadão António Oliveira continue a torcer pelo FC Porto, o treinador terá, inevitavelmente, que pensar de maneira diferente, Mas, descansem os portistas, isso nunca sucederá comigo”.
 
H

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João Pinto

Para muitos, João Pinto foi o melhor defesa-direito da história do futebol português. O mais internacional (em 2000) dos jogadores deste rectângulo à beira-mar plantado olhou para trás, recordou uma vida vivida ao serviço do FC Porto e quando chegou o momento de pensar no século XXI foi o seu clube de sempre que lhe veio à cabeça.
Viena por motivos vários, ofereceu-lhe a noite inolvidável da consagração, mas Saltillo, Fernando cabrita e, claro, José Maria Pedroto e Artur Jorge, também foram lembrados. Um depoimento de um homem tranquilo, amigo do seu amigo e fiel a princípios que nem uma glória quase total conseguiram modificar

“Um rapaz como eu com esta taça na mão!”
Na noite de 27 de Maio de 1987, com largo atraso em relação ao horário previsto, João Pinto e Artur Jorge entraram na sala de imprensa do Estádio do Prater, hoje rebaptizado em homenagem ao entretanto desaparecido Ernst Happel e enfrentaram uma multidão de jornalistas, a maioria ainda não refeitos da surpresa de terem visto o FC Porto vencer, sem apelo nem agravo, o orgulhoso e teoricamente favorito Bayern de Munique.
Depois das reacções do treinador, o capitão do FC Porto respondeu a uma pergunta do autor destas linhas, naturalmente curioso de saber como tinha o jogador reagido a tanta emoção. Calmamente, com a honestidade de um homem do povo, João Pinto sussurrou: “Imagine, um rapaz como eu com esta taça na mão!” Nunca pensei que isto me pudesse acontecer… mas aconteceu”. Talvez assim se explique o que não tem explicação, a resistência do jogador em passar o troféu para os colegas teve que ver, certamente, com o não querer acordar de um sonho que, afinal, era realidade.
Numa manhã portuense, no gabinete que utiliza na sua actividade profissional, o antigo número dois do FC Porto salienta esse momento: “Para mim, foi o grande acontecimento do Século XX, porque me tocou como quase nada e serviu de arranque para o meu clube, que começou a cimentar reputação internacional que já vinha de antes, a partir de Basileia, em que perdemos a Taça das Taças para a Juventus. Mas, a partir de Viena, tudo mudou e como, poucos meses depois, conquistamos a Taça Intercontinental, a vida nunca mais foia mesma”.
“Nunca me arrependi de ficar no FC Porto”
Sem preocupações de alinhar em ordem cronológica uma conversa que… foi isso mesmo, João Pinto não surpreendeu com a resposta que deu para explicar porque é que o Século XX não o viu embarcar para uma aventura no estrangeiro: “É verdade que tive muitos convites, mas o que me ofereceram nunca compensaria o facto de sair do FC Porto. Nunca mudaria de camisola por meia dizia de tostões e, hoje, poderei dizer que serei dos poucos que se considera ‘portista desde pequenino’, dando verdade a uma afirmação que, às vezes, se faz de forma ligeira. Não me arrependi de ter ficado e, hoje, sei que o meu amor ao clube é apenas a retribuição daquilo que as pessoas pensam a meu respeito”.
Talvez por isso fale do “caso da camisola número dois” como qualquer coisa natural: “Quando deixei de jogar, fui rodeado de muito carinho e amizade e até se falou na possibilidade de ninguém vestir a camisola dois. Claro que isso não fazia sentido, foi fruto de uma reacção sentimental do momento e esse número passou a ser do jogador que ostentasse a braçadeira de capitão da equipa. Olhe, é mais uma forma de me sentir envolvido na vida do clube e de sentir que ainda lá ando…”.
E como João Pinto julga que a melhor coisa do futebol são os jogadores, não dá muita importância a pretensas rivalidades entre os grandes clubes: “Foram sempre coisas de dirigentes, empoladas muitas vezes pela Comunicação Social, que quase nunca chegaram aos jogadores. E sei que no Século XXI vai continuar a ser assim. Na selecção, em muitos anos sempre nos demos bem e, às vezes, até nos ríamos dessas coisas”.
E defendeu que hoje como ontem, os futebolistas têm que ser solidários: “Às vezes, os clubes assumem compromissos que, depois, não conseguem cumprir. E os jogadores aceitam apenas o que lhes é oferecido, não têm culpa de, muitas vezes, esses compromissos serem irrealistas. Desejo, sinceramente, que o futuro acabe com situações que deixam os profissionais desamparados e sem possibilidades de defesa. Mas o futebol está bem melhor, cada vez há mais responsabilidade. Mesmo assim, a solidariedade tem muito que se lhe diga. Casos como o de Tonanha, por exemplo, não se podem repetir e eu, pessoalmente, farei tudo o que estiver ao meu alcance para contribuir para os evitar”.
Treinador dos juniores do FC Porto, será que no novo século que se aproxima com grande rapidez, poderá “dar o salto” para aventuras mais ousadas? De novo a calma quase olímpica de João Pinto: “Claro que ambição existe, estranho seria se não fosse assim. Neste momento tento ajudar um grupo de jogadores muito jovens, no futebol e fora dele e, se conseguir, serei um homem feliz. Se a oportunidade aparecer, sou bem capaz de tentar outros voos, mas quero viver um dia de cada vez e pensar em trabalhar noutro sítio é questão para que não tenho resposta. Mas ninguém tem a obrigação de me aturar toda a vida…”.
Com uma vida totalmente dedicada ao futebol, simples e sem pretensões de passar por aquilo que não é, João Pinto, recordou o 25 de Abril: “Tinha 13 anos, vivia em Vilar de Andorinho e lembro-me de ouvir os aviões a voar por cima da minha casa, porque perto estava um quartel e uma antena de televisão. Era pequeno… Preocupa-me muito mais a fome no mundo, o que se passou na Jugoslávia, mesmo que não possa fazer nada para alterar seja o que for. E, depois, há Timor, que nos toca directamente e eu acho que antes de se começar aos tiros tinha sido bem melhor que as pessoas falassem O Século XX, nesse aspecto, não foi nada famoso, acho eu…”.

“Fui um homem feliz por nunca ter marcado o Gomes”
A Expo’98, claro, deixou-o satisfeito: “Olhe, tive muito orgulho por Portugal ter organizado a exposição, não interessa onde foi. Só espero que não se gaste dinheiro apenas na capital, o dinheiro tem que ser empregue onde for preciso!”.
Finalmente, uma palavra para o que mais o marcou numa perspectiva estritamente portista: “Conheço Pinto da Costa há quase 25 anos. É amigo do seu amigo e é intransigente, como ninguém, na defesa dos interesses do FC Porto. Tem provado que está no caminho certo e resta desejar que se mantenha por muito tempo há frente dos destinos do clube. José Maria Pedroto, que me lançou, era um homem adiantado vinte anos em relação a todos os outros, e Artur Jorge pelo que ganhou e pela forma como soube dar continuação ao trabalho que já tinha sido feito, também são duas referências especiais na minha vida. Mas nunca tive problemas com nenhum técnico. Jogadores? Dou-lhe as respostas de sempre, Eusébio, Cruyff, Resenbrinke, Blokhin, Chalana, eu sei lá. O mais completo terá sido o Madjer e fui um homem feliz por nunca ter marcado o Gomes!”.
Um rosário de recordações desfiado num abrir e fechar de olhos.
A lenda João Pinto continua, por muita gente que passe por aquele corredor direito e o ciclo da vida de cada um acabe sempre por chegar ao fim.

SEGREDOS
Casamento e baldes de água antes da final de Basileia
Às vezes, nem as horas que antecedem os grandes momentos impedem que os jogadores de futebol, se calhar para esquecerem a inevitável tensão, se comportem como “meninos de escola”. João Pinto, que sempre se mostrou disponível para uma brincadeira, recordou uma cena curiosa na véspera da final da Taça das Taças, em Basileia, já com Michel Platini e companhia à espera do FC Porto: “Como toda a gente sabe e por força da grave doença de José Maria Pedroto, foi António Morais, também já desaparecido, quem dirigiu a nossa equipa. Na véspera, aconteceu que o hotel que nos recebeu foi cenário de um casamento de grandes dimensões…”
João Pinto revivia coisas que aconteceram há dezena e meia de anos e lá prosseguiu: “Naturalmente que o barulho era muito e nós não conseguíamos dormir (alguns, se calhar, não adormeceram de maneira nenhuma…). O hotel tinha uma espécie de pátio no andar de baixo, onde a festa prosseguia e não estivemos com meias medidas: dois baldes de água lá para baixo e fuga imediata para a segurança dos nossos quartos. Pouco depois, veio o António Morais com o director do hotel, e o nosso treinador, com um ar muito sério, disse ao suíço: ‘Está a ver, os jogadores estão todos a dormir, isso deve ter vindo do outro lado’. Acabou-se o barulho e, no outro dia, o FC Porto perdeu uma final que merecia ter ganho”.

Abraço apertado a Chalana depois de um lance…”ASSIM-ASSSIM”
João Pinto não tem dúvidas. Fernando Chalana, foi dos jogadores mais difíceis de marcar que encontrou ao longo da sua carreira. Mesmo assim e ilustrando a sua ideia de que os futebolistas dos três grandes sempre se deram bem e essa coisa das rivalidades diz mais respeito aos dirigentes e aos meios de comunicação, contou um episódio elucidativo da vida de dois homens que sempre se admiraram e consideraram.
Aconteceu no estádio da Luz, cheio que nem um ovo: “Foi um Benfica-Porto, um dos muitos que disputei. O Chalana do lado do terceiro anel estava imparável e eu lá lhe fui dando umas porradas. A certa altura, terei exagerado, o Fernando caiu e o povo levantou-se, chamou-me de tudo e o meu adversário deu a ideia de que me ia bater. Claro que não me encolhi, também cresci para ele e fomos ao encontro um do outro…”.
Um brilho intenso nos olhos de João Pinto, que terminou, de facto, da melhor maneira: “Estava tudo à espera de um grande conflito, nós… também, mas quando já estávamos muito próximo, unimo-nos num abraço muito apertado, o Terceiro Anel aplaudiu, foi uma coisa maravilhosa. O Chalana, se ler esta entrevista, vai-se lembrar com certeza. São daquelas coisas que não têm explicação, mas que acontecem na vida das pessoas”.

Fernando Cabrita e o “nosso jordas”
Lembram-se os leitores da grande campanha do Europeu de 1984, quando a selecção portuguesa espantou o velho continente e perdeu, de forma dramática, a meia-final de Marselha, no confronto com a França?
Claro que sim, a efeméride pertence à história do futebol português. Originalidade das originalidades, a equipa era dirigida por quatro (!) técnicos, Fernando Cabrita, José Augusto, António Morais e Toni, cabendo a Cabrita, mais coisa, menos coisa, a responsabilidade “atacar” as palestras que precediam os jogos.
A estreia aconteceu em Estrasburgo, frente à super favorita República Federal da Alemanha. Portugal empatou sem golos, foi amplamente dominado, mas começou nesse fim de tarde a grande aventura. João Pinto recorda um episódio curioso, digno da forma muito especial como Cabrita motivava as suas tropas: “Estávamos na cabina, com a consciência de que se aproximava um jogo muito difícil, ainda por cima o de estreia numa fase final, a que Portugal não ia havia muitos anos. Cabrita sabia que nos tinha que motivar e saiu-se com uma explicação fácil do nosso valor: “Rapazes, os alemães são fortes, têm o Rummenigge e o Briegel, que são grandes jogadores. Nós também temos as nossas armas e temos o nosso ‘jordas’! Ainda hoje não sei se o Jordão gostou da expressão, se calhar não gostou, mas foi um dos grandes jogadores da selecção. E não perdemos com a Alemanha!”.

“Futebol português vai dar que falar”

Ao longo da conversa, João Pinto já tinha falado da tristeza que sente quando olha para os acontecimentos do Kosovo, de Timor-Leste, para as imagens arrepiantes da fome e da miséria no Terceiro Mundo. E como é um homem prático, as suas expectativas são isso mesmo: “Acabarei por dizer o que toda a gente de boa vontade diz. Isto é, que a Paz seja verdadeira, que os homens se entendam melhor e, principalmente, que as crianças tenham direito à educação e à saúde”.
Para si não pediu muito, esses pensamentos viraram-se, naturalmente, para o FC Porto e para o futebol português: “Eu, cá por mim, não desejo mais nada que não seja saúde e felicidade para a minha família. Mas, ardentemente, desejo que o FC Porto comece o novo século como vai acabar o presente, isto é, a ganhar, a ganhar cada vez mais. E eu sei que está ao seu alcance continuar como até agora, porque é claro que o clube vai ser gerido da maneira que todos conhecemos. Todos sabemos que o futebol português melhora, mesmo que alguns clubes continuem a lutar para não descer de divisão, outros a tentar a Europa e um número mais restrito a perseguir o título de campeão, sendo necessário assegurar esse projecto organizativo e, se for possível, qualitativo”.
E João Pinto não deixou de pensar nos futebolistas: “Gostava de ver mais solidariedade entre os profissionais, a tal solidariedade que já lhe disse ser muito difícil de conseguir. Mas caminha-se para isso e acho que deverá ser a selecção nacional a unir os jogadores, os que são convocados e os que ambicionam sê-lo. Como sempre, vou seguir a selecção como se ainda lá andasse e do FC Porto… nem se fala. A partir do ano 2000, que já está à porta, tenho um pressentimento que o futebol português vai dar que falar e, neste caso, não será ano novo, vida nova. Século novo, é o que é, de forma que todos os sonhos são permitidos”.
 
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DragaoVerdiano

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Grande João Pinto, um dos símbolos do nosso clube. Tive a felicidade de ainda o ver a jogar pelo FCP.
 

fcporto56

Tribuna Presidencial
26 Julho 2006
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Sacramento
Ja agora estou-me a lembrar da maneira como ele enfrentou os lagartos numa final da taca de Portugal que nos estavam a apedrejar, para nao receberem a taca.
 
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hast

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Domingos Gomes

Acompanhados sempre de perto por um par de óculos, os olhos de Domingos Gomes estão treinados para ver o pormenor. Fazem-no com gosto, porque o conhecimento médico fascina-o, mas não conseguem resistir a fugir para lá dos limites do alcance da lente. Os horizontes deste transmontano que, durante 20 anos, deu a cara pelo departamento médico do FC Porto, são imensos.
Recusam fronteiras e, durante a conversa, fogem rapidamente dos limites do consultório. Andam por África, pelo mar da Foz, pelos balneários das Antas. Serenos, na maior parte das vezes. Olhos de quem está de bem com a vida, grato por tudo o que tem recebido, sem precisar de pedir. É crente, de vez em quando fala com deus “para agradecer”. Quando passa perto de Fátima, conta que lá vai “cumprimentar a nossa amiga, saber se está tudo bem”. Tem resultado, como o demonstra a conversa, que se estendeu no tempo, assim como o olhar, deliciado nas memórias.
“Foi tudo tão bom…”

“Pedroto e Pinto da Costa eram uns visionários”
A viagem podia fazer-se a partir da prateleira que lhe guarda as costas, no consultório da clínica que tem o nome dele, e o protege de quaisquer amarguras. Só assume uma, de resto: a de “nunca ter servido o País, através da Selecção Nacional de futebol… ou até de carolo”. Chegou a ter o cargo, “por umas horas”, mas “houve alguém” que anulou o processo. O assunto revolta-o. Não pelo sonho que não realizou, mas porque se tivesse servido outro clube, “se calhar”, tinha lá chegado, e porque não aprova “os processos” que conduziram a essa frustração, que se dilui depressa na conversa e no olhar, nesse grande olhar, que se terá tornado assim “entre o Índico e o Atlântico”, quando, “à falta da guitarra”, era o acordeão dele que acompanhava o fado de Coimbra com que Vitorino Santana, médico formado, animava a noite, no convés do navio que os levou a África. Domingos Gomes que se afeiçoou ao instrumento no orfeão universitário, era então um jovem mais ou menos resignado. Ou seja, resignou-se à guerra – “Foram quatro anos que me estragaram, mas, felizmente, não destruíram a minha vida de jovem. Tive a sorte de ser escolhido para uma especialidade de elite, a Policia Militar, e não tive os danos dos nove mil que morreram, nem dos muitos que estão estropiados pela guerra” -, mas não deixou de aproveitar esse tempo, entre 1965 e 1969, para acrescentar “dois anos e meio” à frequência universitária.

“45 minutos para ganhar esta porcaria”
As portas das Antas abriram-se-lhe de surpresa quando, em 73, já formado, reencontrou Vitorino Santana. “Ora aqui está o médico para a natação do FC Porto”, diagnosticou o colega, que o acompanhou no clube durante três anos, findos os quais coube a Domingos Gomes substitui-lo no futebol, liderado por figuras-chave na história do Dragão. “Pedroto era um visionário, acompanhado por outro visionário, Pinto da Costa, na altura dirigente”, reconhece, sem medo de exagerar nos elogios. “Não preciso de puxar o saco a ninguém, porque as pessoas têm o seu lugar na história”, lembra, a propósito do início do que classifica como “uma aventura de que não me arrependo”.
Podia recordá-la na primeira pessoa, mas faz questão de a estender a inúmeros personagens. Desde os familiares, a todos com quem trabalhou, porque a vida é assim, “há sempre pessoas que nos ajudam a fazer a nossa história” – e Domingos Gomes nomeou-os a todos, desde Espregueira Mendes, passando por Futre, até ao massagista José Luís e ao “fabuloso” Domingos Pereira, tantos que não cabem aqui -, e que estão entre as “coisas boas” que lhe inundam o olhar. Pedroto foi das primeiras, e das melhores. Era ele “quem impunha as regras”, mas via com agrado a facilidade de “relacionamento com gente jovem” do novo médico, e até a “mudança de conceitos de alimentação e tratamentos” que ele ia introduzindo no clube, e se mantêm. “Achava-me alguma graça e aceitou-as muito bem”.
Começou aí, e dura até hoje, a paixão pela Medicina Desportiva. Com os anos, fez do clube “um ponto de irradiação de ciência médico-desportiva” – foi ele quem iniciou os congressos da especialidade, no clube.
Depois de Pedroto, as memórias fixam-se em Artur Jorge. “Com ele, em 1986, mudou-se a maneira de estar, houve maior responsabilização do sector e do grupo. Até a relva contava, para a vitória!” O melhor exemplo desse rigor será mesmo o discurso feito pelo técnico no intervalo da final de Viena: “Tínhamos feito uma primeira parte razoável, mas um pouco à Arregaçadinhos de S. Vítor. Que me perdoe S. Vítor. Era o FC Porto e o Bayern, aquele gigante, e o Artur Jorge disse uma coisa muito clara: “Têm 45 minutos para ganhar esta porcaria. Depois, não venham para aqui chorar porque não ganharam!” Regressaram em lágrimas, mas com a Taça dos Campeões Europeus.

O herói de Alvalade
O tempo deu razão a Pedroto, que associava Domingos Gomes às vitórias, que acompanharam a equipa e médico pelos anos que se seguiram. Deu também razão ao entusiasmo com que este último (entretanto acompanhado de Rodolfo Moura, o enfermeiro fisioterapeuta que ainda se mat(inha)ém nas Antas) dedicara ao acompanhamento dos futebolistas, e o cargo evoluiu para o estatuto altamente prestigiante que tem hoje. Nas Antas, o cargo médico estendeu-se muito para lá dos limites do grupo de trabalho – “O jogador é um todo e o departamento médico incluía desde a família aos amigos”, orgulha-se -, e tornou-o mais gratificante, como lho fez sentir Bobby Robson: “Era um ‘mister’ com tudo o que isso implica. Um ‘gentleman’, com quem era facílimo trabalhar. Via a maneira como recuperávamos os jogadores, como lhos entregávamos, como dialogávamos; um homem de uma gratidão pública e privada impressionante”.
Quando, ao fim de 21 anos, Domingos Gomes deixou o convívio do plantel Portista, o nome já tinha passado os limites do clube. Vai ser preciso muito tempo para o público esquecer homem que, um dia, quando viajava com a equipa cruzou as portas de Alvalade em corrida, sob insultos e pedradas, para logo voltar a sair, na pele de herói. Um varandim cedera ao peso de um molho de jovens em fúria despropositada, fê-los cair e o médico do FC Porto foi o primeiro a socorrê-los. Dois já estavam mortos. A gratidão do Sporting está exposta na última prateleira do consultório do “doutor”.

SEGREDOS

O treinador não sabia que o futebol não se joga com as pistolas
Simpatia e cortesia são predicados que acompanham, obrigatoriamente, a caracterização de Domingos Gomes, mas que nem sempre o tornaram bem visto, no próprio clube onde, em tempos, passou um treinador que nem sequer gostava de o ver “cumprimentar o colega da equipa adversária”. “Chamava-me à atenção e queixava-se aos dirigentes: ‘Não pode ser, isto é uma guerra’. Há atitudes que esbarram na minha indiferença. Afinal, o futebol não se joga com pistolas, é com uma bola e duas balizas”. O que diria o tal treinador se, um dia, o visse, “com Rodolfo Moura” a assistir um jogador do Benfica que fizera “uma luxação num ombro”? “Estávamos perto e fomos lá”. As bancadas da Luz renderam-se a esse gesto, e o médico não esquece esses aplausos de gratidão.

O árbitro que sabia de médico
Um dia, estava Domingos Gomes a assistir um jogador, no relvado, quando o árbitro se lhe dirigiu. “Ponha-se daqui para fora”, ordenou-lhe. “Pedi-lhe para esperar um bocadinho, o jogador estava mesmo lesionado, mas ele respondeu que eu não percebia nada daquilo. Então percebe você, respondi”. “Não sou médico, mas tenho um curso de primeiros socorros, sei tanto como vê”, ouviu de resposta. Foi o único caso com árbitros, personagens que até admira: “Têm uma paciência que eu não teria. Seria um mostrador de cartões”.

Dar a cara pelo pescoço de Duda
A situação mais dramática que Domingos Gomes viveu, enquanto médico do FC Porto, já conta uns anos largos e envolveu Duda, um brasileiro de boa memória nas Antas, que se lesionou ao saltar a uma bola, “num jogo em Madrid”. “Fez uma hiperextensão do pescoço”, estudada e tratada nos dias seguintes, mas piorou noutro desafio: “Em Setúbal, foi dramático: fez nova hiperextensão, com uma carga eléctrica dos quatro membros”. Imagine-se a dor. O departamento não tinha meios para determinar a extensão da lesão, mas o conhecimento clínico não oferecia dúvidas: “Era uma situação muito grave”, Mas Duda era muito importante na equipa de então, e logo, “apareceu gente a dizer que podia jogar, num dado Domingo”. Foi preciso uma atitude drástica: “Mantive que ele não podia jogar, de forma alguma e, se o fizesse, eu não me sentaria no banco”. “Nem sei o que as pessoas disseram do médico”, recorda. Também não perdeu tempo a pensar nisso: “Fui com o Duda para Paris, onde teve de ser operado de urgência. Tinha uma rotura dos ligamentos da coluna. Se entrasse em campo e fizesse uma coisa igual, tínhamos um tetraplégico. Isto criou-me antipatias e inimizades, mas fiquei de consciência tranquila.

As lágrimas na final de Tóquio
Quando o FC Porto conquistou a Taça Intercontinental, em Tóquio, Domingos Gomes chorou, mas não foi só de alegria. Foi também pela resistência que o treinador de então [Ivic] ofereceu aos métodos propostos para preparar a equipa para a “profunda diferença horária” que iria enfrentar, no jogo com o Peñarol. Chegou a falar com especialistas de aeronáutica, mas o treinador é que não se convencia com aqueles treinos de madrugada, às seis, sete da manhã. “Teve uma reacção de profunda agressividade para comigo e os meus colegas, e só o esclarecimento e a maneira de estar ímpar de Teles Roxo e do presidente impediram que as consequências não fossem piores”. O desempenho Portista nessa final histórica, disputada debaixo de neve, foi seguido em Portugal pela televisão, madrugada dentro. Melhor teria sido impossível.

A fibra do senhor André
Se Duda impressionou Domingos Gomes pelo darma que viveu, um outro atleta impressionou-o pela resistência. O sorriso cresce quando fala de André, actual adjunto dos dragões: “Jogou 15 minutos com uma lesão nos gémeos e uma fractura da tíbia! Só depois veio junto do banco! André é uma referência, como profissional – o senhor André, como lhe chamavam os mais novos”.
A experiência permite ao médico referir-se a estes casos de lesões com naturalidade, mas nem sempre foi assim. Chocou particularmente a “fractura exposta da tíbia de Marco Aurélio; revoltam-no as lesões “estúpidas”, como a de Jaime Pacheco, “o meu querido Pacheco, na Luz”. E, dos inícios de actividade, ficou-lhe “a de Octávio”: “Não pensei que aquilo acontecia às pessoas de quem gostava”.

“Os nossos jovens são uns heróis”
A mais recente paixão de Domingos Gomes é o pé. Te m três exemplares na prateleira das coisas queridas, e enche-se de orgulho quando fala da causa no regresso à docência, abandonada quando se tornou incompatível com as exigências do trabalho nas Antas. O clube que representa é o Instituto de Ciências da Saúde, e sente-se um vencedor, no papel de professor de Podologia: “Já temos aí gente a evitar uns dois terços das amputações que se fazem, por causa da diabetes!”
Mas não é só neste capítulo que o médico antevê um futuro positivo: “Tenho uma vaidade muito grande de ser português, da Pátria que criámos e, conhecendo a nossa juventude, penso que, se estivéssemos no Mundo, só nós, portugueses, o futuro seria bonito. Mas há outras questões. A inovação altera muito a maneira de estar das pessoas. Eu podia dizer que, no meu tempo, a vida era mais difícil, mas não é nada disso. Os nossos jovens são uns heróis. Com toda a informação que lhe chega, com a Internet e tudo o mais, é muito complicado pôr de parte o que é a farinha e o que é o farelo”. Para o país destes jovens heróis, defende que o futuro aconselha “que nos agarremos bem à Europa, mas olhando também para África”.
E em termos pessoais?, pergunta-se-lhe. “O futuro…olhe, não sei, não faço ideia. Que me deixem fazer o que gosto”. Para lá deste pormenor, deseja o futuro tão enriquecedor como o presente, que se faz na Foz, “a minha aldeia”, onde namora o mar e o céu, onde vive com a família – o maior bem que diz ter recebido de Deus – nas aulas, mas também na clínica que tem o nome dele, na Comissão Médica da UEFA (“um projecto extraordinário”, que abarca muitas áreas, incluindo o controlo antidoping, de será responsável, na final da Liga dos campeões), na presidência da Associação dos Médicos de Futebol. Como deputado será difícil – foi-o na última legislatura, pelo PSD, considerou e experiência “riquíssima”, orgulha-se da lei 199/99, que regulamenta as associações médico-desportivas nos clubes, que defendeu no Parlamento e lhe valeu o reconhecimento da Ordem dos Médicos -, porque se diz “uma pessoa de referências” e neste momento não encontra “nenhumas” no partido.
Longe do protagonismo de duas décadas de FC Porto, continua apaixonado pelo clube que adoptou quando se mudou para a cidade que este representa, e que depressa fez esbater a preferência estudantil pela Académica e o fascínio pelos cinco violinos do Sporting. Mas sofrer por fora é ainda pior.
“Não vejo os jogos. Espreito o início, e depois vejo o resultado”, senão é um desassossego, que não condiz com a personagem. Mas só os Azuis e Brancos têm este efeito. Os outros jogos fazem-no dormir profundamente”.

“Baía é um atleta ímpar”
De fora, Domingos Gomes, tem acompanhado, “no silêncio” a que se obriga por respeito para com os colegas das Antas, as dores de Vítor Baía. “É mais do que meu menino, por razões que não posso revelar”, diz, a propósito do (ex) guarda-redes. “O Vítor Baía é aquilo que nós sabemos; como guarda-redes, está tudo dito; no resto é um bom amigo e um atleta ímpar\".
 

jsm

Tribuna
29 Abril 2007
3,319
16
Tenho as melhores recordações de Domingos Gomes. Foi meu professor de fisiologia e a ele devo as aulas mais divertidas e ao mesmo tempo mais competentes de um professor que sabia ensinar. Depois foi o tempo do Porto e a sua carreira. Que posso mais dizer. Um grande homem, um grande médico, um grande homem do desporto, e um grande portista!Um abraço!
Obrigado hast por este post!
 
H

hast

Guest
Barrigana

“Não posso com o Benfica. Incomodam-me esses jornalistas, como o Alfredo Farinha, que só querem o mal do Porto. Andei 14 anos a ser roubado com a camisola do Porto e sei bem o que devem sentir agora os jogadores. Não posso ouvir a telefonia… Os relatos mexem comigo. E até com a televisão tenho que ter cuidado, porque há esses programas com os comentadores que são tendenciosos. Como esse Braga que canta mal como o carago”.
Frederico Barrigana continua a ter o coração tão Azul e Branco que é um homem permanentemente revoltado. Dá para perceber pelas suas palavras.

“Não vi melhor do que eu”
Vive em Angeja, às portas de Aveiro, e caminha para os 78 anos. Casou há cinco, pela segunda vez, e ficou por ali, numa casa envergonhada, todavia, um lar, mas distante da cidade do coração, porque o dinheiro é curto e a vida está pela hora da morte. Os 54 contos que recebe do FC Porto, mais os 30 da reforma, não lhe dão sequer para se deslocar às Antas.
Por isso fala com nostalgia e deixa implícita a vontade de estar mais vezes nas Antas. Ao longe o sofrimento é maior. As mãos tremem pouco, os olhos deixam escapar uma lágrimas dirás quando lhe perguntam pela saudade do passado. É um crítico e um homem sem dúvidas: “Se fui o melhor guarda-redes de sempre no FC Porto? Para trás de mim, não sei, mas depois de mim não vi melhor do que eu, com todo o respeito pelo Vítor Baía e por outros grandes nomes que passaram pelo clube”.

“Mãos de ferro”
Dá uma vontade imensa de alterar a estrutura das “Memórias” e fazer deste texto um desembrulhar de histórias de um homem com um passado riquíssimo. Que se ri com algumas situações que passou. “Vou lá esquecer o dia da minha estreia, em Guimarães! Havia 2-1, um jogo incrível. Houve um ‘back’ central que se lesionou e o Pinga passou para esse posto. O Pinga não, o senhor Pinga, que era como lhe chamava. Tinha 18 anos e um grande respeito por ele. Houve um cruzamento para a área e ele gritou-me: ‘Sai Barrigana’. Eu sabia que se saísse não ia captar a bola, mas pelo respeito que lhe tinha…saí. Foi golo…”
Tinha chegado ao FC Porto, em 1940… por acidente, emprestado pelo Sporting. “O FC Porto tinha um guarda-redes, o Bela Andrasik, húngaro, que foi acusado de espionagem antinazi. Teve medo que a polícia de Salazar o prendesse e… desapareceu. Nunca mais ninguém soube dele. Nessa altura, o Sporting tinha cinco guarda-redes. Eu era um deles e foi a mim que pediram para dispensar. Vim, de boa vontade, porque não me davam oportunidades e… fiquei no FC Porto 14 anos. Nunca pude descansar, porque tive suplentes de luxo – Acúrcio, Américo e Pinho. Eram todos muito bons”.
Pelo meio, as internacionalizações – 12, e foi num jogo com a camisola de Portugal que ganhou o direito a ser conhecido como o “Mãos de Ferro”. “Fomos jogar a França e perdemos 2-0. Mas fiz um jogo tremendo. Apanhava tudo, tudo, e os golos que sofri, um ao terminar a primeira parte e outro a abrir a segunda, foram bolas impossíveis. Os jornais fartaram-se de me elogiar. Os espanhóis classificaram-me como o Zamora português. Grandes tempos”.
E porquê “Mãos de Ferro”? “Encaixava tudo. Não percebo muito bem a maneira de defender de alguns guarda-redes de hoje. Eu agarrava a bola, mesmo em voo. Uma vez agarrei um remate com tal violência que ia asfixiando”…

“Andámos 14 anos a ser roubados”
Barrigana recorda os seus dotes com orgulho e faz até comparações. “Pelo ar, não dava hipóteses a ninguém. Olhe, aquele golo que o Vítor Baía sofreu no Sporting [livre de André Cruz] para mim era canja. Os guarda-redes hoje, antes de voarem para a bola, dão um passinho ao lado, e perdem tempo com isso. É um atraso fatal… Mas o Baía é muito bom, só acho que não sai muito bem da baliza, no um para um. Deve sair-se com o corpo estendido. O Schmeichel, por exemplo, saiu muito bem aos pés do Figo… mas o Figo é um génio. Gosto muito de ver o Schmeichel a sair dos postes. É impecável”.
Barrigana confirma que também o era. Olha com saudade exemplos de grandes exibições, mas guarda poucas imagens em papel fotográfico… “Os jornalistas levaram algumas e nunca mais trouxeram. Nem troféus, nem camisolas tenho, porque quando tive um problema familiar com a minha primeira mulher, desapareceu tudo. Tenho apenas uma foto em casa, com a camisola das Quinas”.
Em 14 anos ao serviço dos Portistas, nem um campeonato… “E sabe porquê? Andámos 14 anos a ser roubados. Era incrível o que nos faziam. Não é mentira que quando íamos jogar a Lisboa já levávamos meia derrota. Saíamos a chorar, porque os roubos eram escandalosos. Faz-me mal pensar nisso, porque sofremos imenso”.
E faz um alerta de coração Azul e Branco: “mas há que ter cuidado, porque isto está a voltar ao antigamente. Depois do 25 de Abril, o FC Porto libertou-se e conseguiu os êxitos que se sabe. Agora começa a ser demais. Aquele jogo com o Campomaiorense foi uma vergonha. Mas, olhe, nem me admiro, porque se dizem que o Benfica tem seis milhões de adeptos, há 40 árbitros na I Liga, é natural que 39 sejam adeptos do Benfica…”

“Nunca tive relações sexuais na véspera de um jogo”
Para chegar a campeão nacional foi preciso ir para o Salgueiros. “Vencemos o campeonato da II Divisão. Ainda lá estive três épocas e lá acabei a minha carreira”.
Gostava que isso tivesse acontecido no FC Porto, mas Yustrich “era um mauzão”: “Sabe que o tipo, nos treinos, colocava-se a dois metros de mim e mandava a bola para bem longe, só para eu não chegar lá. Como eu tinha fama e era um jogador respeitado, fazia-lhe sombra. Ele não gostava disso e acabei por sofrer as consequências”.
Nega que alguma vez o outro lado da fama – de ser um homem da noite – o tenha prejudicado. “Não vou dizer que não saía à noite. Saía, encontrava-me muitas vezes com os dirigentes nos casinos, mas sabia quando o fazia. À quarta e à sexta-feira havia treino específico dos guarda-redes. Na véspera nunca saía de casa, porque sabia que não ia aguentar o treino do dia seguinte”.
Fama de galã… “É verdade que as mulheres gostavam muito de mim. Cheguei a ter muitas atrás de mim, mas olhe que não dava para estourar dinheiro. Aliás, ganhava 2300 escudos (11.50€) por mês. Para aquele tempo, era bom, mas não era nenhuma fortuna”.
Garante que nem fisicamente saiu prejudicado por ter sido um balzaquiano… “Nas vésperas de um jogo, nunca tive relações sexuais, nunca. Dizia à minha mulher para se chegar para lá”. Sorri e atira com uma voz de segredo: “Conheci uma mulher lindíssima” (segundo as indicações pormenorizadas por Barrigana, “uma coisa do outro mundo”). Um dia ela foi ter comigo a um hotel, em Lisboa, onde estávamos em estágio, porque eu lhe tinha prometido uns bilhetes para um jogo com o Benfica. Não é que ela me apareceu no quarto?! O que tive de me segurar. Disse-lhe para ela descer até ao hall, que lá lhe levaria os bilhetes, mas foi cá uma tentação. Curiosamente, nunca mais a vi”.
Outras confissões proibidas, ficam para um livro, que um dia alguém terá de escrever. Porque o imenso Barrigana, hoje de olhos nostálgicos, continua a ter uma vontade de ferro para viver, uma memória inesgotável, até do sofrimento do menino que passou fome nos primeiros anos de vida, no Montijo.

SEGREDOS

Loucura
Mil histórias por contar, e muitas com um amigo de sempre: José Maria Pedroto. “Graças a ele fiquei a receber um subsídio do FC Porto, porque ele batalhou por isso, numa fase muito difícil da minha vida”. Uma circunstância é suficiente para compreender isto: “Tive um convite para ir jogar no Vasco da Gama. Ofereceram-me uma proposta de deixar um homem maluco – 200 contos! A meio da década de 40, ganhava 2300$00, e 300 escudos era por ser internacional. O FC Porto não me deixou sair. Naquela altura estávamos presos ao clube e não era fácil sair. Fiquei por cá”. Mas Barrigana pode orgulhar-se, por exemplo, de o seu primeiro clube – os “Onze Unidos ao Montijo – ter construído a primeira bancada com o valor da sua transferência para o Sporting (pasme!): cinco contos!

Poço de ar
Pedroto, agora como auxiliar importante nesta história. “Não me recordo bem qual foi o jogo. Sei que foi nas Antas e estava muito vento. Nunca gostei de jogar a favor do vento, porque e trajectória da bola torna-se traiçoeira de um momento para o outro. Veio uma bola muito por alto e não lhe consegui chegar. O Pedroto, com aquele ar mordaz, disse-me: “Então, pá, não te fazes às bolas?”. Respondi-lhe com a ironia possível: Que queres? Apanhou um poço de ar… “

Secador de cabelo
Barrigana vive entre o café e casa, casa e café, mas pensa a toda a hora no FC Porto, sempre o tema das conversas com os amigos e a mulher. Não compreende algumas coisas que se passam hoje, como as lesões… “Aquela rapaziada está sempre no estaleiro. Não entendo. No meu tempo, quando havia assim um problema, o massagista, que era o Chico Oliveira, passava calor com um secador de cabelo e depois esfregava álcool. Ficávamos bons em pouco tempo”. Realmente, outros tempos…

Rapto
O “mãos de Ferro” foi sempre muito cobiçado por outros clubes. No tempo do “valia quase tudo”, foi raptado pelo Benfica. Eis como tudo aconteceu: “Tinha acabado de cumprir o serviço militar em Coimbra e, um dia, estava num café, na zona das Antas, e surgiu-me um companheiro da tropa, a dizer que tinha de deslocar-me ao quartel, porque havia um caso grave comigo. Nem hesitei. Meti-me no carro com ele e… só paramos em Lisboa. Na verdade ele levou-me à presença de dois dirigentes do Benfica, que me ofereceram um contrato a ganhar 2800$00 por mês, mais 500$00 que no FC Porto. Deram-me o dinheiro para a mão e assinei o recibo. No mesmo dia, houve um dirigente do FC Porto, o senhor Celso, que estava em Lisboa e soube de tudo. Veio ter comigo e assustou-me com uma irradiação. Nem olhei para trás. Voltei para o Porto”. O dinheiro ficou com Barrigana – “não lhes tinha pedido nada…” – e o rapto gorou-se.

Superstições
Barrigana foi sempre um futebolista de superstições. Dois exemplos: nas Antas jogava de meias pretas, mas nos jogos eram azuis e brancas. Outra: “Morava na rua do Bonjardim e a caminho das Antas, para os treinos, tinha de passar na Igreja do Marquês e benzer-me três vezes”. O guardião actuava também com um fio ao pescoço, onde segurava uns santinhos. “Eram meus companheiros. Um dia fui jogar com a Académica. Nunca tinha perdido com eles e era um jogo fácil. Saí de casa e quando cheguei à rua vi que não os tinha. A mulher veio à janela e perguntou-me se eu os levava. Disse que sim, só para não voltar para trás. Perdi esse jogo. Custou-me cara a preguiça e a confiança…”

Lesão
A mais grave de todas foi num jogo com a Académica. “O Bentes surgiu isolado e… atirei-me com tudo para cima dele. Bati com a tíbia debaixo dos pitons da bota dele. Que dores horríveis. Fracturei a tíbia e estive três meses parado. Por causa disso não fui a Angola, na digressão que o FC Porto fez. Com muita pena minha. Estive lá depois, mas como treinador de futebol, e não vou esquecer aquele país. Depois do 25 de Abril, ainda tive outro convite para treinar em Salazar, mas a guerra assustou-me e recusei”.

…E o século XXI?
“Desconfio de algumas SAD”
A teoria é simples: “Desde que o FC Porto começou a ganhar campeonatos, as pessoas de Lisboa deixaram de ir tanto ao futebol. Olhe agora, que o Sporting vai em primeiro, como os estádios estão mais cheios. Tem só a ver com isso, porque o futebol, não tanto ofensivo como no passado, continua a ser um grande espectáculo. Eles, no Sul, não se entendem com os insucessos, mas vão ter de aguentar, porque o FC Porto continua a ser enorme”.
Fala com orgulho de um passado inesquecível e olha o futuro com grande desconfiança. Falamos de futebol… “É das SAD que tenho que tenho medo. Acho que podem vir a matar os clubes, a deixá-los em dificuldades e a tirar-lhes uma identidade muito própria. Não falo da do FC Porto, porque aí o clube é maioritário e tudo foi feito de olhos nos sócios. Agora essa do Benfica, por exemplo, dá que pensar. Confesso que detesto esse Vale e Azevedo, que está sempre a falar no Pinto da Costa. A inveja é um sentimento traiçoeiro e que nos abre o caminho à estupidez. Mas pode ser que me engane e que os clubes garantam a sua subsistência e a do futebol”.
Outra explicação: “Os clubes não têm capacidade para lutar com outros mais fortes financeiramente na Europa. Como é que o Sporting podia resistir a vende o Simão Sabrosa? Uma transferência naqueles valores deve ter dado para pagar os ordenados aos outros atletas durante um ano! ... A Lei Bosman abriu o mercado, mas estrangeirou as equipas. Achava bem que houvesse uma lei que obrigasse os times a terem no onze um número superior de portugueses em relação aos estrangeiros”.
Apesar de todas as complicações, Barrigana olha o futuro do futebol português com muita esperança. Por exemplo, acredita firmemente que “Portugal pode ganhar o Campeonato da Europa”: “Hoje, os portugueses estão mais iguais aos outros e têm a vantagem de serem craques a tratar a bola. Sinceramente, tenho a sensação que por vezes a nossa selecção até facilita. Os ingleses não são melhores do que nós e os alemães também não”. Barrigana recusa-se mesmo a dar conselhos aos seleccionáveis: “Eles não precisam de conselhos, porque sabem muito bem o que fazer”.
Agora, o “outro” mundo. Aquele com que Barrigana contacta todos os dias, através da televisão e dos jornais. “Não percebo as guerras. Tenho a certeza que as pessoas se desumanizaram. As grandes potências, como os Estados Unidos, a Alemanha, a China, tinham obrigação de tornar este mundo mais agradável”. Quase em revolta: “Faz-me uma grande confusão, por exemplo, que haja fome em África, com uns terrenos tão ricos. Num dia planta-se e no outro já se pode colher. Não percebo e fico triste com a fome, com a miséria. Não é nas minhas mãos que está a resolução de um problema desses, mas gostava de ver um mundo melhor”.

* * * * *

Frederico Barrigana, morreu a 29 de Setembro de 2007, com 85 anos, no Hospital de Águeda, vítima de problemas pulmonares. Barrigana, que apenas foi ultrapassado por Vítor Baía como o guarda-redes portista com mais jogos disputados no campeonato, nunca foi campeão pelo FC Porto, pois a sua chegada ao clube coincidiu com o período de 16 anos de \"jejum\". O corpo do antigo guardião está enterrado no cemitério de Barrô, freguesia do concelho de Águeda.
 
F

FrancisMartin

Guest
\"Mas, olhe, nem me admiro, porque se dizem que o Benfica tem seis milhões de adeptos, há 40 árbitros na I Liga, é natural que 39 sejam adeptos do Benfica…”



Mais uma grande verdade.
Olha, basta olhar para a constituição actual do governo e ver as \"cores\" de cada um, por exemplo.