O Século XX do Desporto

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Com a anuência do nosso caro Administrador, gostaria de «postar» esta obra de inegável qualidade e que muito contribuirá para enriquecer os conhecimentos de todos os Portistas do Portal dos Dragões. Esta colectânea foi publicada, em fascículos, no jornal «ABola».
Caso não seja consentâneo com o que o Admin. pretende para o Portal, é favor eliminar este tópico.

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A civilização do desporto

Mais que um século de desporto, o século XX ficará marcado na história como O Século do Desporto. É essa dimensão maior do desporto, enquanto fenómeno social dinâmico, tantas vezes intrigante e ainda tão poucas vezes estudado sem complexos de uma menoridade cultural que ou o banaliza ou o distancia da realidade, é o que se pretende retratar numa obra de invulgar qualidade, que se deseja, acima de tudo, necessária, útil e consistente tanto para as gerações actuais como para as que, no futuro, quiserem lançar sobre o século XX um olhar curioso e interessado.
A civilização do desporto nasce de raízes que remontam à Revolução Industrial e a novos conceitos e estilos de vida. Haverá uma estranha religiosidade nessa forma pagã de ocupar os tempos livres, um luxo classista só mais tarde liberalizado e que leva à organização e regulação do jogo, do desafio físico, quando não mesmo da exibição competitiva do corpo, em que assenta a ideia desportiva.
É este novo conceito, por vezes marcado por um figurativo desafio guerreiro, a que se juntam princípios essenciais de ética e de estética, mais o da universalidade que já havia marcado o indiscutível êxito dos Jogos Olímpicos da Grécia Antiga, que enforma um tempo, quase coincidente com o espaço secular, que ajudou a mudar a história dos homens e do Mundo.
Muito embora a contemporaneidade seja inimiga do rigor histórico que se pretende, pode dizer-se que a noção restrita do desporto começara nos últimos anos do século XIX e terminará nos últimos anos do século XX. E será por isso que este livro se torna tão especial. Na medida em que retrata a evolução da destreza física e a apetência desportiva do homem ao longo de milénios, o introduz demoradamente no tempo exacto de uma dimensão social que dá origem à civilização do desporto e nos abre a visão de um futuro de redimen-sionamento desportivo, agora vocacionado para novas referências necessariamente coincidentes com a realidade social que o sustenta e determina.
O Século do Desporto, torna-se, assim, uma obra fundamental deste final de século.

Origens e desafios

O desporto ganhou, ao longo dos tempos, uma imagem de sofisticação porventura inalterável. Sem ele os cidadãos do Mundo acusariam um sentimento de falta. Na bancada ou mesmo, a vários níveis, sobre o terreno. Em muitos aspectos ganhou vícios e uma forma repugnante. A vontade de vencer e, mais que isso, a obrigação de vencer reduziram alguns princípios elementares de convizinhança à expressão mais simples, que se traduzem, aliás, no dia-a-dia das sociedades modernas.
Temos todos a convicção segundo a qual a profissionalização do desporto trouxe grandes vantagens e igualmente grandes desvantagens. Na área do futebol isso é mais nítido. A corrida aos milhões, as máquinas sofisticadíssimas, algumas mudando ou escondendo o rosto, que movem o mundo das transferências e através delas tudo fazem depender, empurraram o futebol para um caminho, não diremos sem saída, não diremos sem hipótese de confluir para uma realidade bem menos assustadora, mas seguramente difícil, a levantar muitas interrogações e a lançar um grande desafio sobre aqueles que têm a responsabilidade de colocar a modalidade com mais adeptos no Mundo num plano de equidade e até de legitimidade.
Não temos a certeza se, em muitos aspectos, o futebol não precisaria de dar alguns passos atrás. Não, evidentemente, num regresso secular ao ponto de partida, mas em muitos aspectos esse regresso às origens teria um efeito profiláctico. Não estão em causa apenas questões do âmbito físico-químico nem o abusivo carácter inflacionista que o mercado assumiu nos últimos tempos nem, inclusive, questões do foro geopolítico, das quais decorreram profundas transformações até do ponto de vista da identidade das nações. É óbvio que os responsáveis do futebol ao mais alto nível, tão dependentes do poder político como o poder político, afinal, parece em muitas circunstâncias dependente deles, não podem ficar de braços cruzados perante os efeitos do acórdão Bosman. Para além dos problemas que continuam a afectar o Terceiro Mundo, e para os quais o futebol foi manifestando havelangicamente uma posição generosa, há que resolver o desequilíbrio latente entre países ricos e países pobres – e a repercussão dos seus poderes em sedes próprias.
Em Portugal há sinais exteriores de desenvolvimento, muitos dos quais artificiais, mas há sobretudo uma ausência de conhecimento e vontade para fazer do futebol português, ao nível da sua competição maior e da Selecção mais representativa, uma actividade agregadora.
Este novo tempo tem de ser, dentro e fora, um tempo de boa vontade mas também um tempo de enorme responsabilidade. Que começou na organização do Euro-2004. É tão grande o desafio que Portugal necessita de ser isso mesmo — grande. Afastando de vez as coisas pequeninas como a mesquinhez e a baixa intriga.
 
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776 a. c. até 394 d. c. – Jogos Olímpicos da Era Antiga

O mistério do nascimento dos jogos de Olímpia

Homem em holocausto e os deuses apaziguados

O século XX é o século do desporto. Para trás, muito para trás, houve arremedos. E embriões. Baixos-relevos descobertos por arqueólogos no Cairo mostram a prática de luta como actividade desportiva. Papiros de há mais de 3000 anos afiançam que o faraó Ramsés III promovia competições de esgrima para «distracção dos seus súbditos». Etnólogos renomados garantem que algumas tribos da Austrália se empolgavam em partidas de arremesso de boomerangs. Entre os maias e os azetecas jogava-se com uma bola simulacros de basquetebol e de futebol. Mas é na Grécia que os ideais atléticos se moldam. E explodem. Como rituais da sagração de um homem novo. E do seu corpo. E se Olímpia é cada vez mais uma sedução, não deixa de ser um mistério, o mistério da sua criação. Três versões existem. A de aceitação mais generalizada é a que se segue, se calhar por ter sido ratificada pela cronologia olímpica de Aristóteles. Ifitos, rei de Hélade, atormentado pelas guerras que dizimavam o seu reino, pelos cataclismos e epidemias que o massacravam, julgou que isso era reflexo de cólera divina — e para a apaziguar ordenou sacrifícios vários, chegando até ao holocausto de vida humanas. Debalde. Com o povo já irado pelas suas «macabras atitudes», deslocou-se a Delfos para consultar os oráculos. Dez dias e dez noites esperou a resposta. Debaixo de horrenda tempestade, por entre raios e coriscos, uma pitonisa disse-lhe que pusesse homens a imitar os deuses num festival em Olímpia, à sombra do Templo de Zeus! Assim fez e em 776 a. C., ao décimo primeiro dia do mês de Hecatombéon, no solstício de Verão, o correspondente a 27 de Julho, arrancaram os jogos. E rezam as crónicas que logo depois disso Hélade voltou a viver em paz...

Celebrações funerárias
Mistério havendo sobre a sua origem, de uma coisa não há dúvidas: os Jogos Olímpicos (e outros festivais da mesma matriz na Grécia Antiga) foram nas suas primícias celebrações funerárias, cujo objectivo era prestar homenagem aos manes dos guerreiros e heróis, numa associada intenção de agradar aos deuses. No 23.º livro da Ilíada, Homero fala das corridas de carros, dos combates de boxe, dos torneios armados e do tiro ao arco em honra da Patroclo, companheiro de Aquiles, morto por Heitor na Guerra de Tróia. «Depois dos jogos os guerreiros deixavam a arena e iam para as suas embarcações entregar-se à comida e ao sono e só Aquiles continuava a chorar o seu amigo.»
 
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Em honra de Pélope, o herói do cavalo alado

A hipótese de Hércules

Pélope era filho de Tântalo. Seu pai cortou-o aos pedaços e serviu-o aos deuses em festim pelo simples prazer de os testar. Só Deméter caiu no engodo, comendo-lhe um ombro. Zeus, iracundo, condenou Tântalo ao seu famoso suplício, à sede e à fome — e ressuscitou Pélope, colocando-lhe marfim no lugar da dentada da deusa. Recomposto, zarpou para Pisa, na Élida, onde Enómase usava desafiar em corrida de quadrigas os pretendentes à mão de Hipodâmia, sua filha, vencendo-os e matando-os. Como Pélope possuía um cavalo alado, presente de Poseidão, desfeiteou o rei, casou com a filha e ficou com o trono. Apoderou-se de Olímpia, conquistou a Arcádia e deu a toda a península o seu nome, Peloponeso. Segundo Homero, Hércules preparou, em honra de Pélope (cujo túmulo se encontrava no Bosque Sagrado onde foi construído o estádio de Olímpia), os «jogos mais memoráveis da antiguidade», através de corridas de quadriga, boxe e lançamento do dardo. Teria sido por volta de 1360 a. C. E é precisamente por causa dessa data que vários especialistas, presos à cronologia aristotélica que aponta para o nascimento dos Jogos Olímpicos em 776 a. C. descredibilizam tal versão. Apesar disso, Lisías, num discurso proferido precisamente em Olímpia, no século IV a. C., insistiu em colocar Hércules no centro da sua criação: «Hércules, meus senhores, é digno de memória, por muitas e belas acções e em especial por ter sido o primeiro a instituir este concurso. Até essa época, as cidades gregas viviam isoladas umas das outras. Então ele criou uma competição física e um desfile de inteligência no lugar mais belo da Grécia, a fim de que por amor de todas estas manifestações nos reuníssemos nesse local, para ver umas e ouvir outras. Entendia ele que esta reunião seria o começo da amizade entre todos os helenos, entre todos os homens...» É a terceira versão da criação olímpica. A imagem perfeita do agonismo grego.

Nem álcool nem moral duvidosa
Durante os Jogos Olímpicos todos os intervenientes eram obrigados a uma dieta alimentar cuidada e proibidas estavam as bebidas alcoólicas. Apertado código de acesso limitava a entrada no «espaço sagrado». Em Olímpia só podiam estar «homens, helenos, livres, nem escravos nem estrangeiros» e «que não estivessem perseguidos pela justiça nem tivessem uma moral duvidosa.»
 
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A derrota do titã que engolia os filhos

Zeus contra Kronos

Este é outro dos mitos da criação dos Jogos Olímpicos. Kronos era o mais novo dos titãs, os filhos de Geia e de Urano, a terra e o céu. Urano odiava os filhos e escondia-os na mãe terra, causando-lhe, a ela, insuportável sofrimento. Por vingança, Geia transformou Kronos numa foice e convenceu-o a matar o pai, o que ele fez. Depois, casou com a irmã Reia, mas temendo que os filhos também se revoltassem contra si decidiu engoli-los à nascença — primeiro Héstia, depois Deméter, Hera, Hades e Posidon. Quando Zeus nasceu, a coberto da noite, Reia colocou na bocarra de Krono pedra em vez do bebé, que assim se salvou — e utilizando a taça do pai, Zeus deu-lhe a beber emético forte, vomitou os irmãos. Zeus passou a reinar entre os deuses da terra e em sua honra idealizaram-se os jogos olímpicos no monte de Kronos, na margem direita do rio Alfeu. Foi aí que, no século VIII, a. C., Fídias ergueu a estátua de Zeus Olímpico, 13 metros de ouro e marfim — considerada uma das sete maravilhas do mundo antigo. Dela apenas desenhos baseados na descrição de Pausânias, foi destruída num incêndio em Constantinopla, para onde a levaram depois do saque e da devastação do templo.

O homem perfeito no pentatlo
No ano de 708 a. C. introduziu-se no programa de Olímpia um novo desporto — o pentatlo. Cinco provas para consagrar o super-herói: corrida, luta, salto em comprimento, lançamento do dardo e lançamento do disco. Vencedor era quem fosse primeiro em três das especialidades. O seu fascínio num ápice se espalhou por toda a Grécia e Aristóteles não deixou de escrever um dia: «Os pentatletas são os mais perfeitos homens de todos, pois receberam da natureza a força, a rapidez, a habilidade e a coragem.»

Escravos em segredo na loucura
O perigo espreitava... Na primeira fase das competições no magnífico hipódromo de Olímpia, com 1153 metros de comprimento e 320 de largura, eram os proprietários dos cavalos que se atiravam à liça. Acidentes terríveis, carros virados, corpos despedaçados pelas quadrigas desaustinadas foram criando ambiente de pânico — e por via disso muitos dos ilustres senhores da Grécia passaram a mandar em seu próprio nome escravos para o comando dos carros. Se ganhassem, para além de muito dinheiro ofereciam-lhes a liberdade. Foram os primeiros indícios de profissionalismo olímpico.
 
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A corrida em que orsipo perdeu os calções

O mistério da nudez

Grande parte dos registos da história olímpica apontam para que os atletas competissem em nudez absoluta. Assim se apresentam em todas as suas estátuas que resistiram ao tempo e à voragem dos bárbaros que devastaram a Grécia Antiga. Mas, antes, não fora assim. Homero conta que Euríalo, durante os jogos fúnebres em honra de Pátroclo, «quando envolveu as mãos num chicote de ouro tinha umas cuecas vestidas». Portanto, nu não estava. E Tucídides, que morreu a 400 a. C., não deixou, igualmente, de passar a escrito que «os gregos e até os bárbaros usavam cintos para tapar as partes mais púdicas mesmo durante as competições olímpicas e que só há alguns anos essa prática acabou». O que se sabe de prova provada é que em 720 a. C. Orsipo de Mégara perdeu os calções a meio de uma corrida e ganhou! Por superstição nunca mais se tapou em competição. Continuou a ganhar — e impôs a moda...

Quando os punhos eram como martelos...
São mais duas das lendas fantásticas que tecem os Jogos da sua magia. Glauco de Caristo, campeão de pancrácio em Olímpia, Pítio, Némea e Corinto, fazendo fé numa ode escrita em sua glória, «tinha tal força nos punhos que podia consertar o seu arado com as mãos como se elas fossem martelos de aço». De Milon de Crotone escreveu outro poeta: «Derrubou com um murro um bezerro de quatro anos, depois, tranquilamente, levantou-se do chão e com o animal sobre as costas correu ao longo do estádio, em volta de consagração. Mais tarde, uma vez cozinhado o bezerro, comeu-o todo antes do combate seguinte...»

Os «pous» do primeiro campeão olímpico
É a vitória de um velocista o acontecimento desportivo mais antigo que se pode provar com precisão histórica. Coroebus, efebo de Élida, cozinheiro de profissão, tornou-se o primeiro campeão olímpico, ganhando a corrida de stadion, nos Jogos de Olímpia de 776 a. C. 600 pous tinha a corrida — qualquer coisa como 197,27 metros. Um pou correspondia ao tamanho de cada pé de Hércules — e 600 foram porque a lenda dizia que era a distância que o «homem dos doze fantásticos trabalhos» fora capaz de correr em apneia, sem respirar. Durante 52 anos essa foi a única prova desportiva dos jogos. Só depois é que o programa engordou, chegando até a integrar uma corrida de jumentos denominada kalpi.

Correr para Zeus
O estádio foi construído apenas cerca do ano 350 a.C. A pista era de argila coberta por uma fina camada de areias e as marcações em pedra. Até então os atletas utilizavam na corrida uma zona plana, marcando-se com areia a linha de partida — e como a corrida era em honra de Zeus, a sua chegada era no templo de 34 colunas de mármore, que se erguera, segundo a mitologia grega, precisamente no lugar em que o raio lançado por Zeus do seu trono no monte Olimpo atingiu a terra.
 
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A terra santa do Vale de Alfeu

Puro prazer

Um mês antes da abertura dos Jogos, o Vale de Alfeu era já «terra santa» em místico turbilhão. Atletas, treinadores, juízes, peregrinos viviam ao relento, julgando-se até... «imunes à doença», sob protecção de Zeus. O historiador olímpico Pierre Michel traçou sugestivo retrato desses tempos de gozo, de todo o tipo do gozo — e de devoção. Epicurismo. Entre o sagrado e o profano. «Durante esses trinta dias à espera dos Jogos, apesar dos interlúdios frequentes das cerimónias religiosas, toda a gente se entregava ao puro prazer de viver ali em comunhão divina. E prazer de toda a ordem: espiritual, carnal, cultivado ou não. A planície de Olímpia fazia simultaneamente as vezes de auditório cultural (Heródoto e Píndaro liam e recitavam as obras de sua autoria), de vasta taberna tresandando a vinho, de galeria de artes plásticas (Fídias expunha escultura), de leito comum de milhares de amantes, dos mais perversos aos de mais estrita virtude, e de templo onde se orava num clamor de impedir o sono aos deuses. Bacanais e rezas, eis a nota dominante desses alegres tempos...»

As intimidades da piscina
A piscina do Templo de Olímpia, a única existente na Antiguidade, foi construída no século V a.C., tinha 24 metros de comprimento, 16 de largura e 1,60 de profundidade. Era o espaço para banhos e para... «convívios mais íntimos entre os peregrinos, os atletas, os juízes».

12 juízes... Muito severos
Começaram por ser nove. Mas, a partir da 95.ª Olimpíada, cerca de 400 a.C., os juízes eram 12. Usavam uma veste cor de púrpura e uma coroa de louro na cabeça. Das suas decisões não havia apelo. Se suspeitassem de fraudes ou de dinheiro dado para cozinhar resultados (utilizando moderna e futeboleira expressão...) escorraçavam os atletas dos Jogos. Que de lá saíam humilhados publicamente, depois de severamente chicoteados. Aliás, bastava que qualquer concorrente fizesse uma falsa partida para que o juiz o sancionasse com o látego — que se chamava mastigáforo e estava sempre em sua mão. Para impressionar.
 
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No boxe em honra de teseu

A proibição do médico

Em Elêusis, Teseu foi desafiado pelo Rei Cércion para um combate. Tal como o Rei Âmico que lutara contra os argonautas, Cércion nunca perdera qualquer desafio, cria-se que matava a soco todos aqueles que o afrontavam. Teseu aceitou. Cingiu-o, alçou-o e... despedaçou-o no solo — diz a lenda. E assim ganhou o trono de Elêusis que acrescentou ao seu já reino de Atenas. Em sua honra se lançou o boxe na 24.ª edição dos Jogos de Olímpia. Os combatentes cobriam os punhos com largas correias de couro de bezerro para dissimular esferas de chumbo — que tornavam os golpes mais terríveis. No final de cada duelo, rostos desfigurados, goivos de sangue em catarata, dentes partidos — ou até coisas piores. Por isso, sem surpresa, se proibiu o pugilato ao cruzar-se o primeiro século antes de Cristo. Duzentos anos depois, quando os romanos tentaram recuperá-lo à guisa de espectáculo de gladiadores, Cláudio Galeno, médico do imperador Marco Aurélio, levantou veto à ideia através de frase fremente: «O pugilismo servia apenas para desfigurar os que queriam ser célebres, mas que em troca do nome e da fama ficavam com os narizes partidos e as orelhas feitas em couve-flor — pelo que não se deve ressuscitar a barbárie...»

Porco morto a caminho...
Impressionante o ritual criado em torno da peregrinação a caminho de Olímpia. À frente da coluna, os hellanodikai (juízes que eram também treinadores e afastavam todos os concorrentes que julgavam sem condições de passar pelo orgulho de ser atletas olímpicos, espécie de guardiões sagrados dos mínimos como hoje se conhecem), depois os atletas e, finalmente, os cavaleiros e as quadrilhas. Seguindo a via sagrada, junto à costa do Mar Jónio, paravam para sacrificar um porco na fonte de Piera, na fronteira entre Elis e Olímpia. Passavam a noite em Letrini e no dia seguinte, perante os olhares extasiados daqueles que já lá estavam para observar espectáculo cheio de tradição e simbolismo, seguiam ao longo do vale de Alfeu em direcção ao Altis. Durante cinco dias calavam-se ódios e esfadas, interrompiam-se guerras, todo o apogeu do império e da cultura gregas se cristalizava ali no simbolismo dos Jogos, na magia de Olímpia.

Os pós e os óleos no ginásio
No século II a.C. construiu-se, em Olimpia, o ginásio, que era utilizado para os treinos dos atletas quando as condições atmosféricas fossem adversas. Na palestra existiam as salas onde os competidores se untavam com óleo eliothesium e se aspergiam de pó konisterium — os seus amuletos antes dos combates. Julgavam que assim se tornariam mais fortes.

Oráculos e filósofos
Durante as suas primeiras edições os Jogos de Olímpia tinham apenas uma prova desportiva: a corrida do estádio. A partir da 14.ª Olimpíada acrescentou-se a dos dois estádios, denominada diaulos, e logo depois a dos vinte e cinco. A fama estoirou, o programa engordou, alargou-se a cinco dias. No primeiro, a cerimónia de juramento de atletas e juízes, no Bouleuterion, perante o altar e a estátua de Zeus, para além de rezas públicas e privadas, sacrifícios no Altis consulta a oráculos, lições de filósofos famosos e recitais de poesia. No segundo disputavam-se as corridas de cavalos e quadrigas e o pentatlo, ficando a noite reservada «aos ritos funerários em honra de Pélope, festins, divertimentos e bacanais»!
 
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No pancrácio alguns dos campeões já não souberam que o eram

Jogos de vida e de... morte

Um epigrama grego de 688 a.C. reza assim: «Eu, Andeolus, combati ao pugilato, valentemente, em todos os jogos da Grécia. Em Pisa perdi uma orelha. Em Delfos levaram-me em braços, desmaiado. Em Damteles, meu pai e meus companheiros já estavam preparados para me retirar da arena, morto.» Não, não é o mais arrepiante de tudo. Porque havia luta com barbaridade maior, o pancrácio. Guerra sem arma. Jogo de vida ou de morte. Combinava luta livre com pugilismo — e se permitia estrangulamentos só proibia que se «mordesse o adversário ou se lhe arrancasse os olhos»!!! Uma das suas técnicas mais eficazes era a dos dedos partidos. Não, isso até era questão de somenos — porque há nos anais histórias arrepiantes de juízes a colocarem coroas de louros na cabeça de concorrentes jazendo no solo, em agonia, por entre fios de sangue — ou até já mortos, estrangulados, simplesmente porque o adversário que ficara vivo cometera irregularidade e fora desclassificado pelos plenipotenciários hellanodikai.

Bois, banho de flores, estátuas e poemas
O terceiro dia dos Jogos de Olímpia tinha a manhã reservada à procissão dos hellanodikai (juízes), embaixadores dos estados gregos e dos... animais a sacrificar no Grande Altar em frente ao templo de Zeus — 100 bois oferecidos pelo povo de Elis. À tarde, as corridas a pé. O quarto dia era o mais violento: a luta livre, o boxe, o pancrácio, as corridas de quadrigas e de armaduras. Depois, no quinto dia, a procissão dos vencedores ao Templo de Zeus, onde se cingiam com coroas de folhas de oliveira, seguindo para a phyllobolia, o banho de flores atiradas pela imensidão de peregrinos aos campeões. Era nessa altura também que os escultores combinavam o modo e o molde das estátuas a que tinham direito por terem ganho os Jogos. Ou das odes que lhes eram lavradas. Por exemplo, Píndaro, o mais famoso poeta da Antiguidade, escreveu a do campeão de boxe de 476 a.C.: «Escuta, agora, Hagesidamo, filho de Arquéstrato, porque em louvor do teu boxe cantarei um doce cântico, que será mais uma jóia na tua coroa de louros» — eram assim as primeiras estrofes de imenso poema que perduraria na história, como obra de antologia.
Deitar téogenes ao mar deu em desgraça
A estátua assassina
Vulgar se tornou que os vencedores olímpicos, para além de aclamados com hinos de vitória e cantados em odes de poetas líricos,se perpetuassem em estátuas fabulosas, de tamanho natural, quer em bronze, quer em «pedra preciosa». Em 408 a.C., Eubatus, corredor de Cirene, chegou a Olímpia já com a sua por um oráculo lhe ter afiançado que ganharia. «Homem atraente e cheio de autoconfiança, ganhou de facto e provocou a paixão da célebre cortesã Lais, que tentou seduzi-lo. Ele resistiu, levou apenas para casa uma pequena estátua dela. A mulher, ao vê-la, ficou tão impressionada com a sua fidelidade que lhe mandou construir mais uma estátua em Cirene», conta Daniel J. Boorstin, no seu livro Os Criadores, no qual desvenda, também, que havia a crença de que as estátuas dos grandes atletas eram capazes de curar doenças. Um desses cultos mais populares centrava-se em Téogenes, pugilista de Tasos, ilha do mar Egeu que no século V a.C. ganhou «mais de 1300 combates». Tal era a sua reputação que na fase final da carreira nenhum adversário ousava defrontá-lo — ganhava assim todos os combates sem luta! O seu nome significava literalmente «nascido de deus». Por isso, «semideus» se considerava. Em 465, encabeçou uma rebelião de Tasos contra Atenas. Já depois de morto, um inimigo dirigiu-se à sua estátua para a açoitar, mal levantou a mão a imagem de pedra precipitou-se sobre si, matando-o. Segundo princípio de justiça primitivo, foi atirada ao mar. E Boorstin conta: «Na época seguinte as colheitas em Tasos morreram, dando origem a uma fome sem precedentes. Quando os patriarcas da cidade consultaram o oráculo de Delfos foram aconselhados a mandar regressar os exilados políticos mas mesmo assim a fome persistiu. Então o oráculo propôs que se revivesse a memória de Téogenes. A estátua foi retirada do fundo do mar e de novo colocada na base primitiva — e a fome acabou. Dessa vez, os tassianos prenderam a estátua com correntes. Cinco séculos após a sua morte, a estátua do pugilista era ainda famosa pelas suas curas. Ao longo das suas viagens Pausânias registou o culto das estátuas de Téogenes por toda a Grécia e mesmo entre os bárbaros. O povo de Tassos tirou partido do seu atleta semidivino e caso alguém oferecesse menos de um obol à memória de Téogenes clamavam — pesará na sua consciência e asseguravam que assim o desejo nunca se realizaria...»

10 quilos de carne e pão...
O mais célebre lutador olímpico foi Milon de Croton, que entre 540 e 516 a.C. ganhou seis coroas de oliveira do bosque sagrado. Começou a competir nos Jogos de Olímpia com 15 anos, era aluno de Pitágoas, esse mesmo o matemático do teorema, considerava-se um semideus, comendo diariamente 10 quilos de carne e outro tanto de pão — que regava com 10 litros de vinho. Tornou-se, naturalmente, um «fantástico soldado», para além de ter escrito um livro sobre a natureza, denominado Física.
Os riscos que as mulheres corriam em Olímpia
Bárbaro castigo
A única mulher alguma vez admitida nos Jogos de Olímpia foi a sacerdotisa Demétria, deusa do trigo e da terra. Não, não estava lá de carne e osso — estava numa estátua. O Vale de Alfeu era pura e simplesmente interditado ao sexo feminino durante as Olimpíadas. Pausânias conta que se alguma ousasse sequer olhar do alto dos montes e fosse apanhada teria como bárbaro castigo o seu arremesso das ravinas do monte de Typaeum — o que significava morte pela certa... As mulheres tinham os seus próprios festivais atléticos na Grécia Antiga. E não só. Nos séculos V e IV a. C., em Esparta, mais liberal que Atenas, até competiam nuas contra homens, «como treino para se tornarem mães de soldados». Também lutavam no pancrácio. Aliás, Platão, entusiástico apologista do «exercício corporal», de quem se diz, sem comprovação histórica, que disputou algumas Olimpíadas como lutador, na sua obra Leis, defendia a «preparação física» no feminino. Lutas ou boxe é que não. «Mas corrida e esgrima, desde que as raparigas com mais de 13 anos tivessem trajo adequado, porque a maior glória de uma mulher é os homens não falarem dela nem bem nem mal».

Festival de virgens
Arqueólogos descobriram estátuas de vencedoras do Festival de Delfos e Pausânias descreveu, 200 anos antes do nascimento de Cristo, os jogos no templo de Hera — ciumentíssima mulher de Zeus, que por via disso até gerou o deus Hefeso, sem qualquer colaboração alheia e se tornou deusa do amor conjugal apoiada num seu pavão de 100 olhos, para que 50 estivessem sempre abertos enquanto os outros dormiam. «De quatro em quatro anos as mulheres do Comité das Dezasseis tecem uma túnica para a estátua de Hera e organizam o seu festival atlético, que inclui corridas para virgens e só para virgens, organizadas por idades. Mulheres casadas estão vedadas. Competem de cabelos soltos e vestidas com uma túnica que cai um pouco acima dos joelhos, com o ombro direito desnudado até ao peito. Tal como os homens, para estes jogos é-lhes reservado o Estádio Olímpico, mas o percurso é encurtado em cerca de um sexto. As vencedoras recebem coroas de louro e parte da vaca sacrificada a Hera e podem erigir estátuas de si próprias. Tal como os Jogos Olímpicos, este festival vem da antiguidade...»
 
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A mãe de Pisidoro correu para ele e ficou nua...

Fenedice salva de pena cruel

Os Jogos andavam pelos verdes anos. Pisidoro era corredor de estádio. Seu pai, o treinador, de súbito morreu — e suplicou à mulher que continuasse a treinar o filho para campeão olímpico. No dia do grande desafio, Fenedice disfarçou-se com as roupas do marido falecido e foi para a pista encorajar Pisidoro — que ganhou! Ao vê-lo tocar a meta mesmo em cima da estátua de Zeus precipitou-se para ele, exultante, a túnica desprendeu-se, nua ficou. Entrou em pânico. Sabia que o castigo para mulher que entrasse no estádio era ser lançada do alto das rochas escarpadas de Olímpia para que o corpo se estilhaçasse contra as penedias. A sua salvação foi a vitória de Pisidoro — que pelo privilégio logo adquirido pediu o perdão da pena de morte de sua mãe, que só cometera a ousadia de entrar no estádio porque essa fora a última súplica do pai já enfermo, moribundo...

500 dracmas, alimentação para o resto da vida...
Nos Jogos da Antiguidade, prémio era só para o campeão. Foi isso, aliás, que aconteceu milhares de anos depois em Atenas-1896, em que os vencedores receberam medalhas de prata... porque o ouro era muito mais caro. Inicialmente, em Olímpia, a consagração era feita apenas através de um ramo de oliveira do bosque sagrado, entrelaçado por um «mancebo de 12 anos» — e do direito a estátua, que se colocava em redor do templo de Zeus. Mais tarde passou a dar-se-lhes também uma folha de palma e uma faixa branca para cingir a testa. Mal os Jogos terminavam, mensageiros e pombas brancas eram enviados à cidade «para comunicar a vitória de tão ilustre filho». Os campeões olímpicos, vestidos de púrpura, alçados em carro enfeitado, eram recebidos como deuses — e em alguns casos até se desfaziam as muralhas «para demonstrar que quem possuía atleta assim não precisava de qualquer tipo de protecção»! Ficavam com sustento perpétuo e livres de quaisquer impostos. Por exemplo, em Atenas, Sólon, talvez o seu mais ilustre legislador, decidiu cumular cada um dos seus campeões olímpicos com 500 dracmas do tesouro público, numa altura em que um artesão (socialmente de topo de pirâmide) tinha o rendimento diário de um dracma.

A inexplicada coroa de salsa
Para além de Olímpia, em outros locais da Grécia se realizaram festivais desportivos. Em Delfos, em honra de Apolo. Em Corinto, em honra de Poseidon. Em Némea, tal como em Olímpia, em honra de Zeus — mas com uma particularidade curiosa: em vez de coroa de louros os vencedores recebiam coroa de salsa, ninguém sabe bem porquê, com que simbolismo.
 
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E de súbito os ataques aos privilégios dos atletas

Sabedoria, corpo e cavalos

Poetas e filósofos famosos como Platão e Diógenes insurgiram-se contra os excessos no culto dos atletas. Xenófanes, filósofo do século VI a.C., escreveu, revoltado: «A minha sabedoria é melhor que a força dos homens e dos cavalos.» Eurípides foi ainda mais contundente: «Dos inúmeros males em toda a Grécia nenhum é pior que a corrida de atletas. Escravos dos seus ventres e maxilares, não sabem o que é viver. Na juventude pavoneiam-se na magnificência, ídolos da cidade; mas com a aproximação da amarga velhice são o que são — postos de lado como capas velhas. Em que é que ajudaram a pátria por ganharem uma coroa a lutar, por correrem com a rapidez com que correm, por lançarem discos ou darem murros nos queixos de outros?» Já com o Império Romano em crescendo, Galeano afinou pelo mesmo diapasão, apesar de os campeões olímpicos continuarem a empolgar gente de todas as condições, como os novos heróis, os filhos dilectos de Zeus: «Não partilham da bênção do espírito — são uma massa de carne e sangue, as suas almas encontram-se sufocadas num mar de lama. Nem mesmo os melhores gozam da bênção do corpo. Ao negligenciarem a antiga regra de saúde que prescreve moderação em todas as coisas, passam a vida a exercitar-se, a comer de mais e a dormir como porcos. Daí que raramente cheguem à velhice e quando o conseguem estão estropiados e sensíveis a todos os tipos de doenças. Não possuem nem saúde nem beleza. Tornam--se gordos e inchados: os seus rostos são com frequência disformes e desagradáveis à vista, devido às cicatrizes das feridas provocadas pela luta e pelo pancrácio.» Acentuara-se a decadência moral das Olimpíadas, transformadas em modo de vida, profissionalizadas, estimulando a violência, a batota. Vírus que Aristóteles, apologista da pureza olímpica, verberara sem freio — mas ninguém levara muito a sério.

Um boi comido entre dois combates
Os vencedores eram transformados em heróis, merecedores da contemplação dos deuses — e coroados com ramos de oliveira, que depois colocavam, simbolicamente, aos pés da estátua de Zeus, esculpida por Fídias. As suas imagens se gravavam também, em lacre para a posteridade, nos famosos vasos de cerâmica grega. Heróis dos heróis? Chionis e Leónidas de Rhodes, os únicos a vencerem a corrida em quatro Olimpíadas consecutivas, e Hermógenes de Xanthos, que em três edições sucessivas conquistou oito coroas de louros, o que lhe valeu o apodo de Hippos, o cavalo — estão na primeira linha. Mas nenhum deles leva a palma ao lutador Mílon de Crotona, vencedor seis vezes seguidas do torneio de pancrácio. Ou a Thasos, campeão de boxe, que entre dois combates devorava um boi inteiro. Já agora, o último campeão olímpico chamava-se Varasdatés, ganhou o boxe e depois de Teodósio suprimir os Jogos tornou-se rei da Arménia.
 
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Sócrates e os jogos como preparação para a guerra

A impressionante mitologia do disco e do dardo

Os Jogos Olímpicos eram símbolos de paz — na preparação para a guerra. Sócrates o disse descomplexadamente: «Faz parte do seu dever como cidadão manter-se em boa forma, pronto para servir o estado. O instinto de defesa assim o exige, porquanto é indefeso o estado que tem uma juventude sem preparação para a guerra e para os perigos! E que desgraça é para um homem envelhecer sem ter conhecido a beleza e a força que o seu corpo encerra!» Por isso a escolha das provas do programa olímpico tinha sempre (subtilmente ou não) inspiração marcial. Salto em comprimento se fez porque as ravinas que esventravam o interior da Grécia obrigavam a grandes pulos em caçadas ou combates. O levantamento de pesos de dois e quatro quilos servia para testar a capacidade de transporte de uma arma. Prova regular era a corrida dos hoplitas, com os concorrentes revestidos de armaduras completas, sem cavalos. Até o disco, imortalizado pela estátua de Míron, as proporções perfeitas do corpo desnudo, a beleza transmitida do gesto atlético, o esplendor da força dos músculos em cadeia, teve segunda intenção na origem. Atribui-se a sua invenção a Perseu, filho de Júpiter e Dánae, como divertimento predilecto dos deuses «para preparem a guerra». Aliás, foi com um disco ardilosamente desviado por Zéfiro que, segundo a lenda, Apolo matou o seu amigo Jacinto. Poema homérico conta que Ulisses, com engenho mais pesado que os demais, venceu todos os adversários nos jogos fúnebres de Feácia. E encomiásticas crónicas falam também da «talvez maior proeza olímpica» quando o «hercúleo» Faílo de Crotona atirou disco de «mais de cinco quilos a 30 metros de distância»! O dardo era arremessado como num campo de batalha, «enrolando-se uma tira de couro em volta de um dedo para lhe dar movimento de rotação que aumentasse a distância e aperfeiçoasse a pontaria» — em Olímpia designava-se akontismos e o seu lançamento é mencionado por Homero nos jogos funerários de Patroclo e na Odisseia como divertimento dos pretendentes à mão de Penélope. Para além de exercício marcial, lendário escrito aponta para que Hércules, que fora iniciado nessas lides por Castor, tivesse ele próprio feito questão de introduzir o dardo no programa olímpico.

O saque dos romanos
De súbito, chegaram os romanos! O general Sulla saqueou Olímpia e Delfos para financiar as despesas da guerra — e, não satisfeito com o saque que lhe permitiu vencer os persas, resolveu comemorar a façanha organizando as Olimpíadas de 80 a.C. em... Roma! Apesar do entusiasmo explosivo, os Jogos foram devolvidos a Olímpia. Pervertidos, os romanos retiraram-lhe a essência religiosa, intensificaram os prémios em dinheiro. Era a rotura da sua unidade religiosa, o elogio fanático do individualismo a qualquer preço. Imperadores como Tibério e Nero também quiseram ser atletas olímpicos — e até ganharam as provas de quadrigas em que entraram, sabe-se lá por que ínvios caminhos! Até que o édito de Teodósio suprimiu as Olimpíadas por se tratarem de «deplorável manifestação de paganismo».
 
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Como se misturassem Wembley e Westminster

Culto do homem e sacrifícios

Não há muito tempo a curadora do Museu Britânico definiu os mais famosos jogos da Antiguidade Clássica de forma magistral: «Olímpia representaria nos nossos dias uma área onde se dispusessem lado a lado o Estádio de Wembley e a Catedral de Westminster.» Ou seja, a união do sagrado e do profano. Do culto do homem no culto dos deuses. A fé e o espectáculo. Quatrocentos anos antes do nascimento de Cristo, numa das sessões de filosofia que também integravam o seu programa, Isócrates já fazia desse espírito — o espírito inscrito na alma que Olímpia revelava — a pedra-de-toque do festival: «Os jogos são um costume que nos leva a concluir tréguas e a renunciar aos ódios para nos reunirmos num mesmo lugar, em que as orações e os sacrifícios, feitos em conjunto, nos recordam a nossa origem e nos desafiam a ser homens cada vez mais plenos, não apenas pelo culto do corpo...»

4000 0bjectos nas ruínas de olímpia
O decreto de Teodósio já não permitiu que se realizasse a Olimpíada de 394. Grande parte das estátuas dos campeões de outrora foi fundida. Um ano depois Alarico invadiu o bosque sagrado — e «deixou tudo a ferro e fogo». O templo dos Jogos transformou-se em terra queimada, depois coberta por vegetação e soterrada. Durante vários séculos Olímpia não passou de um fascínio perdido em livros de história. No século XVIII, Bernard de Montfaucon, beneditino francês apaixonado pelas obras do historiador Pausânias, chamou a atenção para a cidade que fora berço de tão famosos Jogos — e alvitrou que o seu solo talvez estivesse repleto de monumentos e estátuas, que se escavasse... Quarenta anos depois o alemão Joachim Winckelmann, fundador da arqueologia moderna, preparou explorações mas antes de as encetar morreu. Já no século XIX, ingleses e franceses visitaram o vale de Olímpia e logo concluíram que as suas populações utilizavam os grandes templos como pedreiras, de lá tirando muito material para a construção das suas casas. As escavações foram feitas por alemães, prolongaram-se pelo tempo fora e em 1954, já em pleno século XX, descobriu-se o atelier de Fídias e mais 4000 objectos de bronze, pesos, halteres, discos, pesos, moedas.
 
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O bacilo, o imperador que nasceu na ibéria

Nero caricato campeão

A Grécia vivia já sob o jugo romano. Nero, o louco incendiário, também quis ser atleta olímpico — e não só. Entrou na corrida de quadrigas, assumindo ele próprio o papel de auriga, o que empunhava as rédeas de um tiro de dez velozes corcéis. Durante a prova caiu do carro, incapaz de sustentar os solavancos, os seus escravos recolocaram-no lá — mas devido à sua falta de energias desistiu antes do fim. Apesar disso os juízes decidiram que o vencedor seria ele, todos os demais concorrentes foram desclassificados — «porque não poderia haver rival para a categoria impe-rial de Nero». Esse era já o tempo em que se comprava e vendia vitórias, a perversão pior que bacilo que haveria de matar uma das mais fabulosas invenções da humanidade, empolgante comunhão na fé e no prazer... Cristo nascera havia 393 anos. Teodósio I, imperador de Roma que nascera na Ibéria e se convertera fanaticamente ao cristianismo, decretou a proibição de todos os festivais pagãos. Trinta e três anos depois Teodósio II, mais radical ainda, ordenaria o arrasamento de todos os templos gregos — e Olímpia também. Tremores de terra e cheias no rio Alfeu conjugaram-se na destruição e soterração. Visigodos, vândalos, avaros e eslavos passaram por cima das suas ruínas, cujos resquícios tiveram de aguardar mais de um milénio para voltarem a viver o orgulho de ser o que foram — uma chama para os homens, a modernidade antes do tempo. No seu simbolismo. No seu ritual. Foi isso que inspirou Courbertin. Sonhou a obra, chamara-lhe até «poeta louco»...
 
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Homero, Platão, Aristóteles e o nu na origem da ginástica

A origem não poderia ser mais desconcertante. Ginástica deriva do termo grego gimnos — que significa simplesmente nu! Percebe-se porquê, era assim que os mancebos a praticavam nas academias de filósofos, em luxurioso culto de corpo. Sem complexos. As primeiras referências à gimnasia surgem na Ilíada, esse fabuloso conjunto de poemas épicos em torno da Guerra de Tróia, escrita por Homero, o poeta cego — e descrevem os exercícios que Aquiles fazia em honra de Pátroclo, o seu fiel amigo. Platão e Aristóteles eram eles próprios instrutores nos seus ginásios. Inspirado pelo que vira na Grécia, Nero construiu em Roma o primeiro ginásio — «para que os patrícios romanos e os filhos dos nobres recebessem o ensino físico que ia equilibrar harmoniosamente o corpo com a mente»... Depois, o hiato. As paixões arrefecidas. O corpo e o seu culto diabolizados pela moral judaico-cristã. Assim, só por volta de 1776 se redescobriram os registos da ginástica, quando John Bernhard Bassedow «combina exercícios físicos com outras normas de instrução na sua escola modelo, que chamou Philantropinum». Por outra via, a Prússia tornar-se-ia, nos séculos XVIII e XIX, o seu mais irradiante foco. Na redescoberta dos aparelhos, das barras paralelas, do cavalo com arções... Entretanto, na Suécia, através de Pehr Hendrick Ling, uma variação — a ginástica em movimentos mais lentos e suaves, exercícios com auxílio de maças de madeiras, a ginástica sueca. E assim seria também com toda a naturalidade que nos Jogos Olímpicos de 1896 houve ginástica.
 
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O jogo da bola dos gregos e Alexandre magno

A vergonha dos vencidos
Os gregos não eram adeptos dos desportos de equipa. Porque o que os seduzia era o culto do vencedor. Do herói. Segundo Píndaro, «a virtude especial do atleta era o aidos — o respeito dos deuses e dos outros homens». Um atleta vencido nunca cumprimentava o vencedor. Outra vez o canto de Píndaro, sintomático, arrebatante: «Os vencidos regressavam a casa das mães envergonhadas, furtivamente, por atalhos, prostrados pela desgraça...» Na antiguidade clássica os jogos de bola eram, essencialmente, exercícios não competitivos ou práticas de aquecimento para o atletismo, o boxe, a luta — e Desmond Morris, em A Tribo do Futebol, não aceita que tenham surgido assim as raízes do futebol: «Alguns escritores modernos têm dedicado especial atenção ao antigo jogo grego chamado episkuros, no qual se opunham duas equipas. À primeira vista parece tratar-se do perfeito precursor dos nossos jogos de futebol, mas os eruditos rejeitam hoje essa teoria. Um estudo mais aprofundado revelou que o episkuros era um lançamento de bola de tipo muito diferente.» Garantido está também que esses exercícios ganharam notável expansão por essas eras quando Alexandre Magno se apaixonou por eles. Sendo rápido a correr, preferia o atletismo, mas depressa caiu em enfado quando se apercebeu de que os seus competidores o deixavam vencer sempre por ser imperialmente quem era. Voltou-se, então, para o malabarismo da bola, rapidamente imitado e por via disso se surgiram em enxame campos próprios para o jogo, primeiro na Grécia, depois em Roma — alguns até com hipocausto, o revolucionário sistema romano de aquecimento subterrâneo. O único problema técnico parecia ser a produção dos esféricos, feitos de bexigas de porco ou de boi, que rebentavam num fósforo — mas muito mais mortífera foi a campanha levantada em descrédito do jogo, que levou a que Marcial, o mais aureolado poeta romano, escrevesse numa das suas mais famosas obras algo de verdadeiramente assassino: «O homossexual, pavoneando-se, aguarda a bola, tentando fortalecer o pescoço com este exercício inútil.» Por essa altura, em Roma, as corridas de quadrigas movimentavam mais de 250 mil espectadores. O jogo da bola adormeceu, dormitando ficou séculos a fio...

A bola dos soldados chineses
Existem referências chinesas do século XXV antes de Cristo a um arremedo de futebol para soldados. «No reinado de Huang-Ti os guerreiros do Império adquiriam destreza e resistência para as suas campanhas, fazendo passar uma bola cheia de pêlo ou de crina por uma corda esticada entre dois postes.» A isso se chamava tsu chun. Tradução literal: bater na bola com o pé. A jogo semelhante chamavam os nipónicos da Antiguidade kemari.

Odisseia e legionários
Na Odisseia, Homero refere-se a um jogo de bola, semelhante ao haspartun romano, que contagiou a Grécia, de tal forma que os atenienses concederam cidadania a Aristonico de Caristo simplesmente pela sua «habilidade a jogar a bola». Os legionários romanos propagandearam o haspartun por todas as terras conquistadas — e há até uma lenda que diz que na Gália eram os crânios inimigos que pontapeavam.
 
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Idade média – Pré-história do desporto em Portugal

As origens gaulesas do futebol

«Chôule» até à porta da igreja
Num exaustivo e espectacular trabalho sobre as origens do jogo, mostra-se como a França também reclama para si as raízes do futebol. Através do chôule, que se jogava com uma bola cheia de feno ou de farelo. Praticantes, em avantajado número, empurravam-se a soco ou a pontapé em direcção a uma meta predeterminada, normalmente a porta de igreja! Era jogo sazonal, normalmente de Natal ou Ascensão. Proibida, pela violência que despertava, em 1319 por Filipe V, por Carlos V um século volvido — e em 1781 pelo Parlamento que a Revolução Francesa derrubaria... No dia de Natal de 1555, partida de chôule foi contada assim por um jogador de Gouberville, também jornalista: «Ao correr contra mim, Cantepye empurrou-me com tanta força com o seu punho, no lado direito do peito, que fiquei sem fala e com dificuldades, que me levaram para casa. Desmaiei e perdi a vista perto de meia hora, pelo que tive de conservar-me na cama.» Crónica semelhantemente dramática surge em publicação da região de Jumiéges, dando sinais ainda mais precisos do que era o jogo: «Os jogadores de chôule fugiam através dos campos, erravam pelos bosques durante vários dias e atravessavam ribeiros a nado. Logo que a chôule era tocada por um dos jogadores, passava a novas mãos até que o detentor a conseguisse conduzir à sua toca.»

Calcio fiorentino
Il calcio. Outro jogo medieval de bola, praticado há séculos, na Piazza Della Signoria, em Florença. Como acontecia com outros na antiguidade clássica, a bola só episodicamente era pontapeada. E o desafio turbulento, escasso de regras, diversão de Carnaval. Para Desmond Morris também não foi por aí que o futebol deu no que deu. «Ao contrário de outras formas primitivas de futebol popular, era disputado entre equipas constituídas, num espaço limitado e já foi também considerado precursor do jogo moderno. Isso é, porém, improvável porque o calcio entrou em declínio no século XVII e só renasceu depois de o moderno futebol inglês se ter imposto, nos fins do século XIX. Tornou-se, hoje, uma grande atracção turística em Florença, onde é apresentado com pompa e circunstância e colorido do seu antigo passado.»

As justas e os páreos que às vezes acabavam mal

O infante que morreu a cavalo
Na Idade Média a actividade da nobreza em tempo de paz devia consistir no exercício das armas e na conservação da robusteza do corpo. E se estão perdidas na poeira do tempo as origens do desporto português, sabe-se, contudo, de ciência feita, que torneios e tavolados excitavam espectadores. Eram os desportos da época. No intervalo das guerras. Para preparação delas. Nesse sentido, D. Duarte escreveu, em 1433, a Arte de Bem Cavalgar Toda a Sela. Praticava-se a cavalo, além de corridas e saltos, uma série de outros exercícios desportivos, todos eles mais ou menos violentos. Desses os mais vistosos e conhecidos eram as justas. Outros havia como o páreo, em que dois cavaleiros corriam de mãos dadas e numa dessas sessões, em finais do século XV, morreu o Infante D. Afonso. Segundo o historiador Oliveira Martins, a justa era um combate entre dois cavaleiros de espada ou de lança. «Realizavam-se geralmente num terreiro delimitado por vedações, com palanques e tribunas onde tomavam assento os espectadores, entre os quais numerosas damas. Mas havia casos de justas em plena via pública. Nas festas de casamento de D. Leonor, irmã de Afonso V, com o imperador da Alemanha, em 1450, foi o próprio rei quem desafiou os cavaleiros para as justas reais que manteve na Rua Nova, a principal artéria de Lisboa. Espectáculo por assim dizer obrigatório em todas as festividades, o torneio do século XV assumiu foros de representação teatral ou de concurso de elegância, com os cavaleiros vestidos por vezes de maneira exótica e disputando um prémio estabelecido.»

Sangue a pingar na areia
Os torneios e tavolados medievais encantavam os portugueses pela sua espectacularidade — e bravura. Neles se aqueciam emoções de pedir meças às que se incendeiam nos grandes desafios de futebol de hoje. Jogavam-se como se se representassem cenas de guerra, corpos cingidos em armaduras, tingindo-se, por vezes, os campos de vermelho. De sangue. Alexandre Herculano, em O Bobo, traça retrato arrepiante disso. «Pendendo a cabeça e vacilando como embriagados, via-se nos contendores gotejar o sangue por baixo da baveira, peça que defendia o queixo inferior, e deslizar-lhes pelo gorjal e pelo perponto até pingar na areia. Desatinados, depois de darem algumas passadas vagas, quase ao mesmo tempo, erguendo os braços, como árvores que cedem à derradeira machadada, bateram hirtos em terra.»

O jogo da péla e os padres proibidos de ver

D. João I em atentado ao pudor
O jogo da péla, modalidade de arremesso de bola com o intuito de derrubar obstáculo ou imagem — ou atingir ponto mais distante como no lançamento do dardo, não caíra nas boas graças de D. Duarte que o não louvava, por entreter a mocidade da sua época em detrimento dos exercícios de cavalaria. Do que ele gostava era da «luta corpo a corpo». D. João I, seu pai, fora exímio lutador, na «peleja utilizava como traje de combate apenas sumárias peças de roupa», razão por que, em nome do pudor violado, o clero lançou fortíssima contestação a tal «manha». Por esse tempo se disputavam também torneios de corridas e saltos a que se chamavam ligeirices. Uma delas, segundo Oliveira Marques, consistia em «pôr a mão na coma e no arção e saltar para cima do cavalo». Para além das corredilhas, corridas de obstáculos em arremedo de corta-mato, de salto em comprimento a pés juntos, popularíssimo era saltar a palanca. Sendo a palanca vedação de madeira pode dizer-se que foi embrião do salto em altura. Tal como a braceria o foi do dardo e da esgrima, porque integrava arremesso de lança e manipulação de cimitarras. Fernão Lopes não deixou de acentuar que «D. Fernando era muito braceiro, que não achava homem que o mais fosse; cortava muito com a espada e arremessava bem a cavalo». Em 1591,nas suas Constituições, D. Afonso de Castelo Branco, Bispo de Coimbra, proibia aos eclesiásticos jogar ou ver jogar péla ou mancais em lugares públicos «principalmente despindo-se em calças e gibão como alguns com pouco respeito do seu estado fazem»!

Festa do demónio e virtudes animais?
Do século XIII ao século XVII o tiro ao alvo e a esgrima empolgavam aristocratas que também se divertiam em duelos com pesadas armaduras cobrindo-lhes o corpo todo e um elmo para protecção da cabeça e da cara — apesar de o papa Inocêncio III considerar a esgrima como «verdadeira festa do Demónio, por ocasionar massacres e espectáculos sangrentos». William Shakespeare foi um dos seus praticantes. No século passado a atracção principal já era o florete, arma de salão — manejada com luva por lutador armado de peitilho acolchoado e máscara de rede metálica na cabeça. Alguns anos antes Pérez de Mendonza, um dos primeiros grandes esgrimistas mundiais, escreveu de forma cativante as virtudes que um espadachim deve ter: «Do leão o coração, da águia a vista, da raposa a astúcia e do gato a ligeireza.» E sem surpresa, pelo seu ilustre passado, a esgrima seria uma das modalidades que abririam os Jogos Olímpicos em 1896, em florete e sabre.
 
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De 1700 a 1890 – A (re)actividade física

O novo desporto na Lisboa setecentista

D. Pedro campeão de tirar a barra
Na Lisboa setecentista as espadas e as espingardas eram utilizadas sobremodo na prática do duelo, que a lei proibia por costume bárbaro. E nas suas ruas, citando o historiador Fortunato de Almeida, «simulando a péla e outras manhas, rapazes e adultos jogavam a pedrada com fundas e sem elas, do que resultavam ferimentos e inconvenientes de vária espécie». Foi por esse tempo que se começou também a atirar a barra, com D. Pedro II despontando como exímio praticante. Tirar a barra era disparar varão de ferro ou bala de artilharia o mais longe possível. Exactamente como no lançamento do peso da Grécia Antiga. Em 1687, por ocasião do seu segundo casamento, o monarca, para além de «três dias de touros», ponteou o programa de festividades de «vários exercícios físicos» a que ele próprio se entregou. O seu cronista não lhe regateou encómios: «D. Pedro II teve forças extraordinárias, que exercitava no jogo da barra com admiração dos que o viam. Jogou as armas com grande perfeição e destreza com tanto desembaraço como bizarria. Fez grande gosto do exercício de andar a cavalo, em que era formoso em uma ou outra selas, excedendo aos mais peritos no modo de mandar e obrar no manejo dos cavalos. No arriscado e mui difícil exercício de correr touros excedeu a todos os do seu tempo, em que houve insígnes toureiros de cavalos.» Ou seja, o sport (que assim ainda se não chamava naturalmente) estava incrustado nos limites do prazer dos nobres. Ainda não havia ginástica nas escolas, o povo se corria era em busca de migalhas de pão, era de canseiras na labuta. Inexplicavelmente, no século seguinte, até entre os aristocratas o fascínio pelo «culto do corpo» esfriou. Perdido cada vez mais o fulgor histórico de Portugal, os seus homens eram na alma o que já eram no físico.

Boxe à moda da Grécia
De boxe se fez uma das primeiras notícias (mas pouco) de desporto impressas em papel de jornal. Em 1681, periódico londrino informou que se disputara na cidade um combate de boxe, à moda dos «bárbaros duelos da Grécia Antiga». Nem sequer o nome do vencedor. Muito mais publicitado seria a batalha entre o campeão inglês Tom Cribb e o americano (negro) Molineux, na pequena cidade de Sussex, em 1811. «Vinte mil eram os espectadores, ao décimo nono assalto era impossível reconhecer os combatentes, a não ser pela cor da pele, tanto os seus rostos estavam horrivelmente desfigurados pela contundência dos golpes. Toda a multidão apostou, por vezes somas fabulosas, sobre a decisão da pugna. O capitão Barclay, famoso pedestrianista, ganhou nas apostas 10 mil libras. Um padeiro arriscou todo o seu dinheiro e os seus bens, incluindo a casa...» Por essa altura já se lutava de luvas. Tinham sido lançadas em 1750, eram de pele de camelo com um enchimento de cabelo ou crina.

Seis horas seguidas em combate
Segundo Fernando Ferreira, em Boxe — A Negação do Desporto, o combate mais longo da história travou-se entre Jack Jones em Patsy Tunny, em 1855 — e durou 276 assaltos, naturalmente em várias sessões, vários dias. Mas, nesse mesmo ano, em Melburne, James Kelly e Jonhathan Smith estiveram seis horas e quinze minutos em ininterrupto duelo e chegaram ao fim «completamente despedaçados», mas empatados! Os grandes lutadores eram todos eles profissionais, chegavam a arrecadar 1200 libras por cada vitória. Uma autêntica fortuna.
Origens do hóquei em ritual de índios
Os feiticeiros do baggataway
Centenas de anos antes de Cristóvão Colombo colocar pé (e fogo!) na América, algumas das suas tribos de índios punham a sua superioridade (ou não) em jogo através do baggataway — que à semelhança do jogo da péla do México incorporava impressionante ritual mágico. O historiador Miguel Guzmán Peredo conta: «Com uma preparação de meses, os feiticeiros deixavam tudo preparado para o grande momento. Na noite anterior, à luz de archotes, tinham lugar as danças e os cantos no próprio campo onde, horas mais tarde, haveria de dar-se o jogo. Entre o baggataway e o hóquei moderno muitas semelhanças: em ambos os casos os jogadores batem e empurram a bola até a colocar dentro da baliza. No baggataway a péla era de pele de veado cheia de crinas e os paus eram rematados por uma espécie de rede, feita com tiras de couro. A baliza era delimitada por duas estacas de rede, feita com uma distância de dois metros entre elas e a uma altura de oito. E era normal tomarem parte em cada jogo mais de uma centena de homens, enlouquecidos pelo esforço de levar a bola de pele até ao extremo contrário do campo e marcar um ponto, sempre que conseguiam fazê-la passar por aquele marco.» Igualmente há vários séculos os bretões tinham jogo que consistia em bater numa péla com um pau. Na Escócia chamavam-lhe shinty. No século XVIII os ingleses retiraram-no do limbo e deram-lhe nome novo: hockey — por derivar de hook, de gancho. E depois da relva apareceram os patins...

As sementes do hóquei
No início do século XVIII, um holandês, de nome Hans Brinkner, inspirado nos patins para o gelo, imaginou trocar as lâminas por rodas e assim lançou a génese da patinagem — que depressa empolgou franceses, sendo dos «espectáculos mais aclamados da Feira Mundial de Paris». Em 1876, o americano James Limpton inaugurou em Newport, Rhode Island, a primeira pista pública destinada aos «malabarismos com patins». Poucos anos depois surgiu no Denmark Hill Rink, como atracção supermoderna, o rink polo — um jogo de bola em que os seus praticantes tinham calçados patins com rodas em vez de lâminas. E assim nasceu o hóquei em patins.

Pedro Álvares Cabral contra o tratadista de xadrez
Já o fora na Antiguidade, sobretudo entre persas e chineses. Mas tão popular na Idade Média como na Era dos Descobrimentos era o xadrez. Treino de mente, sinal de diplomacia e cordialidade. Contraponto da violência que marcava quase todas as actividades físicas de antanho. Introduzido pelos árabes na Península Ibérica, tornou-se passatempo de elite. Álvares Cabral, antes de partir à descoberta do Brasil, disputou, «para treino do espírito e descontracção da alma», partida com Pedro Damião, notável tratadista de xadrez, boticário de Odemira, considerado «imbatível nos reinos de Portugal, Castela e outros quiçá». O navegador perdeu, mas, para «espanto de todos, nunca por xeque-mate».
Antes de Coubertin, várias movimentações olímpicas
Rousseau, o prado alemão e o major grego
Não, não foi na mente de Pierre de Coubertin que fulgiram as primeiras ideias de restauração dos Jogos Olímpicos. Anteriores tentativas houve. Por exemplo, em 1604, em Inglaterra, realizaram-se os Jogos de Cotswold — subintitulados de «olimpos». Com a participação da nobreza, «abertos também à plebe e às senhoras do sexo», lançaram-se competições de corridas com e sem obstáculos, caça, esgrima, lançamento e levantamento de pedras, equitação e xadrez — ao mesmo tempo que se alargava o programa a danças, músicas e canções. Já no século XVIII, face à corrente de defensores dos exercícios de ginástica como meio de formação de jovens, outras tentativas de renascimento olímpico se fizeram. O filósofo Jean-Jacques Rousseau fez referência aos Jogos Olímpicos na sua obra Emílio — e tendo como base os seus ideais, o pedagogo e moralista alemão Johan Basedow convenceu o príncipe de Dassau, patrono da sua escola, fundada em 1771, a aproveitar o aniversário de sua mulher, a 24 de Setembro, para realizar aquilo que denominou de Programa Competitivo Olímpico. De 1772 a 1779 se fez essa «festa de desporto», num dos prados do príncipe, tendo para tal ele próprio mandado construir uma pista especial para corridas e um campo para saltos e lançamentos. Discípulo de Basedow, Guths-Muths — apóstolo da educação física escolar e pai daquilo a que viria a chamar-se ginástica alemã ou pedagógica —, intentou restaurar os Jogos Olímpicos à moda da Antiguidade Clássica, em Janeiro de 1859 o também germânico Ernst Curtius proferiu palestra, em Berlim, sobre as Olimpíadas da Grécia, e inspirado por isso, nesse mesmo ano, o major Evangelos Zappas organizou os primeiros Jogos Pan-Helénicos, que contaram com mais de 20 mil espectadores. Mantendo-se a nível exclusivamente nacional, repetiram-se em 1870, 1875, 1888 e 1889. Nenhum outro país se mostrou muito empolgado com o que Zappas estava a fazer. Foi preciso Pierre de Coubertin retomar o desafio. E por isso ainda hoje não se livra de alguns remoques — da acusação de não ter saído da sua cabeça a genial ideia de se ter limitado a copiar Zappas...
 
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De 1700 a 1890 – Inspiração grega cada vez mais viva

Quando a moral cristã decidiu que nadar era pecado...

A fabulosa proeza de Lord Byron
Mosaicos da noite dos tempos no Médio Oriente mostram homens a nadar... à cão. No que restou de Pompeia também. Os gregos, apesar de não incluírem a natação nos Jogos Olímpicos da Antiguidade, popularizaram-na de tal modo que na Escola de Belas-Artes de Paris existe uma escultura de um nadador em acção. Aliás, Platão preceituara que homem que não soubesse nadar não poderia sê-lo na plenitude. No Império Romano ergueram- -se sumptuosas piscinas — tão sagradas como os coliseus. Só na Idade Média é que a natação se começa a afundar porque os moralistas cristãos decretaram que «desvendar-se qualquer parte do corpo seria pecado e obra do Demónio». Em 1810, lord Byron, esse mesmo, o poeta inglês que se encantou por Sintra, atravessou o estreito de Dardanelos nadando 1960 metros em pouco mais de uma hora — e a sua proeza, por alguns cronistas de então considerada «fabulosa», pôs outra vez o Mundo inteiro a falar de natação, fascinado por ela. Vinte sete anos depois, a Sociedade de Natação de Inglaterra já organizava provas oficiais, em seis piscinas artificiais espalhadas pelo país. Mas o interesse maior centrava-se no canal da Mancha, «com as suas correntes tão tempestuosas e as suas imponentes marejadas». Em 1875, Mathew Webb, capitão do exército real, lançou-se à água em Dover e 21.45 horas depois pisou terra em Griz Nez. Nasceu um herói. O primeiro homem que ousou ligar os 20 quilómetros que separam Inglaterra de França. Por essa altura, revolução no modo de nadar, a quebra do estilo clássico, à cão. Frederick Cavill, que era já o mais renomado nadador inglês, emigrou para a Austrália e ficou basbaque ao ver o modo como nadavam os autóctones das ilhas dos mares do Sul. Regressou, ensinou o método aos seus filhos, que num ápice se tornaram invencíveis na Europa. E depois na América, para onde foram viver — espalhando o crawl. Crawl chamou um deles ao estilo por considerar que nadar assim era como deslizar (crawling) sobre a água...

Cavalos a correr...
Depois de electrizarem a Grécia e o Império Romano, as corridas de cavalos contagiaram os árabes, que as integraram em festas aparatosas. Foi, aliás, para imitá-los que, nos finais do século XVI, em Inglaterra, se deu a ressurreição do hipismo. Na centúria seguinte, sob reinado de Jacques I, fundaram-se as famosas corridas de Chester e Stadform. O apogeu explodiria com Jorge IV, entre 1820 e 1830 — o monarca alcançou ele próprio 185 prémios em oito anos, arrecadando mais de um milhão de libras! Era o arranque da magia de Epson com o seu derby — assim chamado por ter sido inaugurado em 1780 pelo conde de Derby. Ou do mundanismo de Ascott na tradição de estar lá sempre a família real a assistir.

Quando Shakespeare considerou o «football» de «baixa condição»

Bola imparável
Sob inspiração dos romanos, do Haspartun, de forma tosca e confusa, os ingleses foram criando espaço para a explosão do futebol, através dos seus variados jogos de bola. Valia tudo. Pontapés, rasteiras, placagens, derrubes. Em 1314, Eduardo II, preocupado com a «segurança do reino» (!), tentou sentenciá-lo de morte — «por causa dos inconvenientes que poderiam derivar de tanta gente a acotovelar-se duramente». William Shakespeare, chamando-lhe já football, reputava os seus praticantes como «gente de baixa condição», em plena quarta cena do Rei Lear. Em 1531, Thomas Elyot escreveu um livro que vincava ainda mais radical aversão: «Esse jogo de bola não é senão fúria brutal e violência extrema, só merecendo ser posto em silêncio perpétuo.» Assim esteve até que, em 1660, quando os Stuart voltaram ao reino, se apagou a contestação, o futebol voltou a invadir praças e ruas — e o rei até se dignou assistir a um encontro entre os seus criadores e os empregados do duque de Albermarie... Era já imparável a torrente. O despertar do estado letárgico. Na primeira metade do século XIX as escolas inglesas, sob o lema «mente sã em corpo são», encorajaram os vários tipos de futebol, por mais selvagens que fossem. Em Harrow apontou-se para jogo de pontapé que então se chamava socker, mas que depressa se tranformou em soccer. Na escola de râguebi era a prevalência da mão sobre o pé. Com base nisso, em 1863 formalizou-se a Associação de Futebol e em 1871 a União de Râguebi. Era a separação das águas. Definitivamente. Na Irlanda prevaleceu uma mistura de futebol e râguebi que se popularizou como futebol gaélico e se disputa desde 1884. Na Austrália, a síntese do futebol gaélico e do râguebi em campo de críquete deu origem ao the footy, que se mantém vivíssimo na Oceânia. Em 1874, nos Estados Unidos, sob influência do soccer e do râguebi canadiano, criou-se o futebol americano, trocando o pontapé pela mão e pela corrida vertiginosa com a bola — esse espectáculo de milhões e trambolhões.

Futuro em 7.55 horas
Em 1815, o Etton College elabora o primeiro conjunto de regras de futebol. Possuindo cada uma das escolas o seu próprio código de jogo, em 1848, no Trinity College, em Cambridge, acordam-se, após 7.55 horas de discussão, as primeiras regras uniformizadas, cabendo a H. Winton e J. C. Thring escrevê-las em decálogo. Determinações havia verdadeiramente desconcertantes. Como estas: «Os jogadores não devem chutar a bola no ar» ou «não serão permitidos toques de calcanhar». Trinta e oito anos depois, o International Board lançava as 14 Leis do Futebol. Era a harmonização definitiva. Para a conquista do Mundo. E o corte radical com o que haveria de ser o râguebi moderno.
Onde também se fala de «mariquice»
O primeiro clube e a batalha da taberna
Em 1855, em Sheffield, nasceu o primeiro clube de futebol. Oito anos depois, a 26 de Outubro, os seus membros reuniram-se com os componentes da equipa da Universidade de Cambridge e representantes de outros clubes e escolas na Freemason\'s Tavern, em Lincoln\'s Iin Fields, Londres — com um único fito: «Eliminar a violência e a brutalidade deliberada no jogo de futebol.» Duas facções se abriram num instante. Francis Campbell, que preconizava «o espírito varonil do desafio», ao sentir-se derrotado, abandonou a sala aos berros, acusando os demais de... «mariquice». E algum tempo depois fundou a Rugby Union. Separavam-se as águas. Nasciam assim dois desportos. E a 8 de Dezembro os vencedores da batalha da taberna assinaram as «14 regras básicas do futebol».

Sem árbitro ou com ele na tribuna
Nos primeiros tempos do futebol não havia árbitros, as faltas eram controladas pelos capitães de equipa. Depois, o árbitro surgiu mas pouco — ficava na bancada, só assinalava o que via ao de longe... Quando os campeonatos se tornaram mais competitivos e o verniz do fair play começou a estalar, já nas derradeiras décadas do século XIX, decidiu-se, então, mandar o árbitro para dentro do campo e dar-lhe poder absoluto.

As balizas ao Deus-dará
Em 1871, os implantadores do futebol criaram um posto novo. O guarda-redes. O único jogador a quem passaria a ser permitido usar as mãos. Goal-keeper lhe chamaram, por ter como missão impedir que a bola cruzasse a linha de golo. Antes da existência de guardião a baliza era um quadrado, de medidas variadas, entre os três metros e meio e os quatro, com uma corda sistematicamente a servir de trave. Em 1865, determina-se que sobre a baliza deve ser estendida uma fita à altura de 2,40 metros. Dez anos passados a fita é substituída pelo travessão de madeira, através do Sheffield. Redes ainda não havia, para que a bola não resvalasse para longe colocavam-se atrás das balizas tapumes de madeira ou muro de tijolo — em 1891, um clube de Liverpool resolveu essa questão, patenteando as redes, que só em 1938 seriam incluídas nas leis do International Board.

As caneleiras e a luz
Só em 1874 é que são permitidas as caneleiras em jogo e quatro anos depois usa-se o apito pela primeira vez. Foi exactamente nesse ano de 1878 que, em Inglaterra, se experimentou a iluminação para o primeiro jogo de futebol nocturno. Um fiasco. De tal forma que apenas em 1956, num jogo da liga inglesa, em Portsmouth, se jogou à noite, com «luz como se fosse ao cair da tarde».
 
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De 1700 a 1890 – Futebol já lançado e outras novidades

A primeira taça disputada no futebol

Pouco dinheiro
Em 1871 abriu a disputa da Challenge Cup, primeira competição organizada de futebol no Mundo inteiro, lançada sob a égide da recém-fundada Football Association. A final jogou-se no Kennington Oval de Londres entre as equipas Wanderers e Royal Engineers. C. A. Alcock, que fora exactamente o homem da ideia, marcou o golo da vitória do Wanderers — e levantou, garboso, a taça de prata de meio metro que comprara com as 20 libras que juntara através de subscrição pública. No ano seguinte já havia bilhetes pagos. Por exemplo, um passe para toda a temporada do Albion Football Club, em West Bromwich, custava um quarto de libra, o que a preços actuais não chegaria sequer a 90 escudos! Para o primeiro jogo internacional, a 30 de Novembro de 1872, entre a Inglaterra e a Escócia, cada entrada custou um... centavo! E, apesar de os jornais da época zurzirem os jogadores considerando que tudo não passara de «partida monótona e decepcionante», o futebol explodiu, espalhou-se pelo Mundo, deu no que deu. De tal forma que a Football Association, na sua história oficial recentemente publicada, (se) exalta assim: «O futebol está na mesma linha do idioma inglês, da versão autorizada da Bíblia, da origem das espécies de Charles Darwin, do meridiano de Greenwich ou de coisas básicas da sociedade moderna como o computador ou o selo postal.»

Eça, os cavalos e os badamecos!
Moda na Lisboa de Eça as corridas de cavalos no Jockey Clube da Travessa da Conceição. O prize money ascendia a 600 mil réis. Era chique estar lá e apostar. E quando, em Os Maias, o marquês alvitra que «todo o patriota devia apostar pelos cavalos do visconde de Darque, que era o único criador português», Afonso da Maia retorquiu: «O verdadeiro patriotismo seria, em lugar de corridas, fazer uma boa tourada... Cada raça possui o seu sport próprio e o nosso é o touro: o touro com muito sol, ar de dia santo, água fresca e foguetes. A vantagem da tourada é ser uma grande escola de força, de coragem e de destreza. Em Portugal não há instituição que tenha uma importância igual à tourada de curiosos. E acredite numa coisa: é que se nesta triste geração moderna ainda há em Lisboa uns rapazes com certo músculo, a espinha direita e capazes de dar um bom soco, deve-se isso ao touro e à tourada dos curiosos... Não temos o cricket, nem o football, nem o running, como os ingleses; não temos a ginástica como ela se faz em França; não temos o serviço obrigatório, que é o que torna o alemão sólido. Não temos nada capaz de dar a um rapaz um bocado de fibra, senão badamecos derreados da espinha a melarem-se pelo Chiado...»

Miss américa a correr de bicicleta
As primeiras bicicletas não eram... bicicletas. Celerífero se chamavam — de madeira se fabricavam e não tinham pedais. Mas serviram para competições desportivas no bosque de Bolonha. Ainda na primeira metade do século XIX a grande revolução. Ernest Michaux, que tinha uma oficina da draisennes em Paris, lembrou-se de adaptar à roda da frente de uma delas uma manivela semelhante à que fazia trabalhar a sua máquina de amolar. Foi assim que nasceram os pedais. Os preços galoparam. Eram apenas privilégios de aristocratas. Mas não só de homens. Por exemplo, numa das primeiras provas de ciclismo que se realizaram no Mundo inteiro, o Paris-Ruão, cinco mulheres cumpriram os 123 quilómetros e a Miss América até foi segunda classificada.
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Mademoiselle Blanc galhardamente em busca do espectáculo novo
Pouco dinheiro
A Portugal continental chegou a primeira bola de futebol em 1884. Trouxe-a Guilherme Pinto Basto, que estivera a estudar em Londres. Estragou-se em brincadeiras. Foi outra, que o irmão Eduardo comprara, que acabou por servir para o primeiro jogo (organizado) de futebol que se fez por cá, a 22 de Janeiro de 1889. Antes, tal como na Camacha, desafios espontâneos, divertimentos de veraneio, em Belas e Cascais. O Jornal do Comércio dedicou-lhe reportagem especial — e até caricatura a ilustrar. «Uma quantidade enorme de pessoas foi ao Campo Pequeno assistir ao desafio entre ingleses e portugueses em futebol. Grande número de carruagens com elegantes senhoras, entre as quais se destacava mademoiselle Ida Blanc, governando galhardamente ao lado de sua mãe uma soberba parelha de cavalos pretos. O resultado do jogo foi muito lisonjeiro para os nossos compatriotas, que conseguiram ganhar a primeira partida (referia-se, certamente, à primeira parte) ficando a segunda empatada. Não faltaram os trambolhões e rebolões próprios do jogo, mostrando todos os fortes mancebos que nele tomaram parte quão exímios são no manejo do pontapé, como disse uma elegante que, por casualidade, ficou ao pé de nós.» Foi, também, no Campo Pequeno, no vasto terreno que ali havia e onde haveria de construir-se a praça de touros, então considerado arrabalde de Lisboa, com os seus terrenos para hortas e piqueniques, que alguns dias depois do jogo entre os amigos de Pinto Basto e os ingleses que trabalhavam no Cabo Submarino se apresentou a «algumas dezenas de espectadores» a equipa do (Real) Ginásio Clube Português. Foi a primeira equipa a fazê-lo formalmente, apesar de Henrique, Afonso, Carlos e Alexandre Vilar, filhos do proprietário do Colégio Lisbonense, também conhecido por Colégio Vilar, já terem fundado, com alguns dos seus alunos, o Foot Ball Clube Lisbonense.

A primeira bola depressa se desfez...
Em 1875, na planície da Achada, na Camacha, o inglês Harry Hilton organizou um jogo de bola para o que convidou alguns dos seus amigos madeirenses. O fascínio do moderno divertimento feneceu quando a bola se desfez, massacrada por milhares de pontapés — e afinal não havia outra. Mas, por via disso, num agora jardim de infância da Camacha se colocou uma lápide-legenda que rezava assim: «Aqui se praticou futebol pela primeira vez em Portugal.» Seguiam-se-lhe os nomes dos autoproclamados pioneiros. Muitos anos depois grande parte dos caracteres de bronze descolaram-se da pedra, perderam-se na erva. Há história(s) que acaba(m) assim...

No que deu o árbitro janota...
A impopularidade do futebol, motivada pelos anticorpos patrioteiros criados pelo Ultimato e pelo desprezo de tudo o que tresandasse a anglo-saxónico, abrandaria por finais de 1892. Foi por essa altura que, segundo Homero Serpa, nasceu a lenda da tradição do árbitro de preto: convidado para referee de um match de football em Carcavelos, um jovem lisboeta da alta sociedade, que estudara em Inglaterra, andou madrugada fora em baile de sociedade, de paletó e cartola, seguiu para o campo e assim mesmo arbitrou. Gostaram de lhe ver o traje, era diferente, conferia dignidade, passou a ser moda.
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Wimbledon nasceu depois de uma festa na relva
Mau palpite
Em 1868 um grupo de furiosos adeptos do tão britânico jogo de cricket — que em Portugal também foi moda entre aristocratas e endinheirados na passagem para o século XX — fundou o All England Lawn Tennis & Cricket. Nove anos volvidos, o primeiro sinal da sua grande obra: um torneio de ténis que haveria de rasgar a história, começando por chamar-se singelamente Lawn Tennis Championships. A ideia surgira numa festa de jardim, 22 foram os pioneiros nos courts de Worple Road, nas redondezas de Wimbledon. Numa quinta-feira cinzenta e após a final (cujo bilhete custou um shilling) ter sido adiada e interrompida por causa da chuva (como aconteceria depois, vezes sem conta — e é disso também que se faz a tradição), coube a vitória a Spencer Gore, um já renomado sportsman — que apesar dos seus talentos era muito mauzinho em futurologia, pois após receber a taça de prata de campeão aventou: «O lawn tennis tem falta de variedade, é bola cá, bola lá, e essa monotonia vai impedi-lo de tornar-se um desporto de grandes emoções, grandes popularidades.» Enganou-se... Em 1884 abriu-se o torneio às senhoras. Treze foram as concorrentes, ganhou Maude Watson. Com a dobragem do século, Wimbledon prestigiou-se, foi-se tornando no santuário que é hoje. Até 1905 os título mantiveram-se ingleses. Nesse ano May Sutton tornou-se a primeira estrangeira vencedora. Dois anos depois coube ao australiano Norman Brookes quebrar a hegemonia britânica...

O mundo chique do ténis
Em 1880, muito mais chique que o football era já o ténis. Durante oito anos, contudo, seria apenas o jogo da moda da alta sociedade britânica de Lisboa e do Porto. Bonito de ver por aristocratas aperaltados e aos magotes — mas sem portugueses em jogo. Emigrados tão-só. Em 1898, Guilherme Pinto Basto, que já trouxera a primeira bola de futebol para Portugal, nacionalizou o ténis, convidando alguns dos seus amigos a imitar os ingleses de raqueta na mão. O seu canto de sereia chegaria ao Rei D. Carlos, que se tornaria fervoroso jogador, nunca faltando às mundanas reuniões em que, a pretexto do jogo, se passeavam os sinais exteriores de riqueza e fidalguia. O primeiro torneio organizado disputou-se na Parada, no chiquérrimo Sporting Clube de Cascais, e o vencedor foi... Guilherme Pinto Basto. Aliás, até 1901 não perdeu um único desafio em Portugal...

U. S. Open
A exemplo da Europa, o ténis, na América, era divertimento estival da sociedade endinheirada. Em 1881, o U. S. Championship — actual U. S. Open — abriu outros caminhos. A primeira edição decorreu no Newport Casino — actualmente a sede do Internacional Tennis Hall of Fame. Richard Sears foi o seu primeiro vencedor. Por mais seis vezes ganhou. Na localidade de Rhode Island se manteve o torneio durante 34 anos. Às mulheres se abriu em 1887 e Ellen Hansell sagrou-se a sua primeira campeã.
 
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De 1700 A 1890 – Ténis na ribalta

Roland-Garros não se chama verdadeiramente assim

Aviador morto em combate
Celebrizado com o nome de Roland-Garros, o principal torneio mundial de ténis em terra batida não se chama verdadeiramente assim mas Campeonatos Internacionais de França e a sua origem é muito anterior à do Estádio do Bosque de Bolonha, erigido em 1927, onde agora se disputa. A primeira edição remonta a 1877 e o primeiro vencedor foi um inglês, embora até 1925 estivesse apenas reservado a jogadores inscritos em clubes de França. O primeiro nome aureolado de glória em Paris foi Max Decugis, francês que viveu grande parte do seu tempo em Inglaterra e que morreu com 96 anos — jogou 12 finais entre 1902 e 1923, a última contando já 41 anos! Oito vezes ganhou, um record que nunca mais ninguém conseguiu bater — e que só não é mais amplo porque a I Guerra Mundial interrompeu o torneio entre 1915 e 1919. Ah! Porque é que Roland-Garros se chama assim? Em 1927 o Stade Français decidiu construir um novo estádio de ténis, mais prestigiado, o seu presidente Emil Lesieur cedeu terrenos em Porte d\'Auteil e colocou apenas uma condição: que se chamasse Roland-Garros, vítima da I Grande Guerra, que apenas praticara ténis por diversão no Stade Français e não mais que isso. Nasceu na ilha de Reunião, frente a Madagáscar, onde aliás está sepultado. Passou a infância na Cochinchina (no que é actualmente o Vietname), para onde os pais emigraram. Deslumbrado pelas façanhas dos Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras, foi o primeiro homem a fazer a travessia aérea do Mediterrâneo, em 1913. Quando rebentou a guerra inventou um processo de tiro por entre as pás da hélice, foi aprisionado, evadiu-se — e voltou à famosa Esquadrilha das Cegonhas. Em 1918, com 30 anos, o herói morreu em combate quando o seu avião, denominado Demoiselle de Santos Dummont, foi abatido por um alemão perto de Vouziers.

Ginástica... Militar!
Em meados do século XIX a ginástica propriamente dita não passava de exotismo em espaços especiais. D. Pedro V convidara o espanhol Amorós y Ordena, marquês de Sotero, para aplicar em Portugal o seu «sistema de educação física baseado em exigências acrobáticas e militarizadas (!)». Pina Manique introduzira cursos assim no Colégio de São Lucas da Casa Pia de Lisboa mas depressa esmoreceram. Mais consistente seria a abertura no Circo Price, em 1860, de uma classe de ginástica que haveria de fundir- -se no (Real) Ginásio Clube Português. Poucos eram os ginastas. Poucos continuaram a ser um ano depois, quando Luís da Costa Monteiro fundou, na Costa do Castelo, aquilo a que chamou a «primeira escola de ginástica de Portugal». Nos anos seguintes ginástica se dava apenas também no Colégio Militar, na Escola Normal de Lisboa e na Escola Académica.

Anderssen, primeiro campeão mundial de xadrez
Vencedor do primeiro torneio com verdadeira expressividade internacional — em Londres, em 1851 —, o alemão Adolf Anderssen é considerado como o primeiro campeão mundial de xadrez, título que manteve até 1858, altura em que Paul Morphy o desbaratou. Professor de Matemáticas em Breslau, aproveitou-se do abandono de lides de Morphy em 1862 para voltar a recuperar o título mundial, o qual manteve até 1862.

Tudo por causa dos tempos mortos

A bola no cesto da fruta
Tal como o voleibol, o basquetebol nasceu na América, sob o signo da YMCA — cartel de colégios de inspiração cristã. Foi no Verão de 1891, na cidade de Springfield, no estado de Massachusetts. A proposta foi no sentido de lançar um jogo de pavilhão que servisse para preencher o hiato aberto entre as épocas do futebol americano, do atletismo e do basebol. No alto de cada poste foi então colocada uma caixa de fruta (redonda e um pouco mais larga em cima que em baixo) — e no esboço das regras apenas duas substanciais proibições: «Não era permitido socar-se a bola ou forçar contacto físico com o adversário, que à segunda falta era expulso do jogo até que o outro convertesse cesto.» Em Janeiro de 1892 o YMCA edita o primeiro breviário de regras e em 1895 forma-se a primeira equipa universitária em Yale. Inicialmente, o basquetebol era de nove — passou a cinco jogadores em 1897. James Naismith foi para a Universidade de Kansas, que assim se transformou no seu centro de difusão pela América. Empresários de Nova Iorque, New Jersey e Pensilvânia logo se aperceberam de que havia filão a abrir-se e lançaram-se à construção de equipas profissionais ainda em 1896. O primeiro jogo entre elas opôs a YMCA de New Jersey e a YMCA de Brooklyn e os seus elementos foram num fósforo afastados da instituição por «desvio ao amadorismo». Não se preocuparam, passaram, assim, de estudantes a jogadores de basquetebol. Dois anos depois lançou--se a primeira liga profissional, a National Basketball League (que haveria de ser a génese da NBA) e Forest Allen, discípulo de Naismith em Kansas, foi o primeiro técnico a receber dinheiro para treinar basquetebol.

Minonette para velhinhos
Em 1895, William Morgan, director de Educação Física do Colégio de Hollyke — ligado à YMCA (Young Men Christians Association) —, decidiu motivar para a actividade e recreação homens de negócios de idade avançada que se preocupassem com o seu sedentarismo. Por isso, idealizou um jogo, inspirado no ténis (subiu a rede para 1,90 metros) e no basquetebol (servindo-se da câmara-de-ar das suas bolas) que, no fundo, consistia apenas em manter a bola em movimento, arremessando-a com as mãos por cima da rede. Chamou-lhe minonette. Não muito tempo passado, Halstead, também professor da YMCA, sugeriu a mudança de nome — para volleyball. «Mais condizente, dado que o jogo se baseia no simples lançamento da bola para a frente e para trás por cima de uma rede.» Em 1905 já se jogava também em Cuba, antes de 1914 no Porto Rico, nas Filipinas, no Uruguai, na China e no Japão. A I Grande Guerra espalhou o jogo pela Europa, porque era uma das grandes paixões dos soldados americanos, que o jogavam nos jardins, nas praias ou até nas paradas dos quartéis... Com Portugal aconteceu isso. As forças expedicionárias dos Açores ensinaram-nos a vários jovens e António Cavaco, que para Lisboa viria, entretanto, cursar engenharia, atirou as sementes do voleibol ao Técnico e elas foram germinando.