O pai era... florista. A mãe doméstica, em sagrado respeito à tradição islâmica. Rabah nasceu... francês, porque, por essa altura, De Gaulle ainda não dera a independência à Argélia. Nunca se deixou tocar pelo fascínio por livros, por em pequenino ter descoberto que só uma bola o poderia resgatar de uma vida à míngua de tudo, até de pão. Foi uma infância sempre em busca do sonho do futebol, jogando nas ruas, às vezes de lama, rasgando calças, estropiando sapatos. Nem sequer pode dizer-se que fosse um enfant terrible: «Não o era pelo respeito que tinha pelo meu pai, mais respeito que medo, que fazia das tripas coração para que os seus 12 filhos tivessem vida melhor que a dele. Graças a Deus acabaram por ter, por exemplo uma das minhas irmãs tirou o curso de Direito, coisa pouco normal numa mulher argelina, tornou-se jornalista e apresentadora de televisão.»
Quando começou a jogar futebol, no Onalait, clube do seu bairro, bairro pobre, miserando, nas redondezas de
Argel, Madjer era... defesa-direito, mas como marcava muitos golos o treinador fez de si avançado. Brilhou e, logo no ano seguinte, saltou para o MAHD. «O meu pai já tinha assinado a autorização para eu jogar no MAHD, mas fui-lhe pedir outra assinatura para representar o ANC-ANP, um clube de militares. Eu queria ir para o segundo e o meu pai disse-me que não assinava duas vezes, que era homem de uma só palavra e eu deveria ser sempre assim. Ou jogava no MAHD ou não jogaria em mais algum clube. Deus estava comigo e protegeu-me. Se meu pai tivesse assinado pela segunda vez, provavelmente eu não teria chegado tão longe, porque o MAHD era um grande clube e proporcionou-me a ascensão no futebol, ao contrário do outro clube, que era secundário. Joguei no MAHD 10 anos, sendo campeão, vencedor da Taça da Argélia e dos Jogos Africanos. Foi do MAHD que me transferi para o Racing de Paris, os franceses ficaram encantados com o meu futebol durante o Mundial de Espanha e...» Para contratarem Rabah, em 1983, os dirigentes do Racing de Paris tiveram de pagar 100 mil contos ao MAHD, garantindo o jogador um ordenado mensal de 1500 contos! Nunca um futebolista africano ganhara ou custara tanto dinheiro. Mas Madjer não seria muito feliz na Cidade-Luz. Antes pelo contrário. Queixou-se de lesões, de chauvinismo e de racismo, como as grilhetas que lhe entravavam o génio. Lucílio Ribeiro ofereceu-o a Pinto da Costa, que lhe comprou o passe a preço de uva mijona. Pouco antes de se estrear, pelo F. C. Porto, a 22 de Setembro de 1985, no Estádio da Luz, na inauguração do fecho do Terceiro Anel, garantiria que em França numa mais jogaria, jamais viveria. Por lá tivera, contudo, o primeiro contacto com Portugal, apaixonando-se pela música de... Linda de Susa, de quem se tornou fã, como se tornara de Michael Jackson, George Michael, Stevie Wonder e Tina Turner.
O jejum e o sexo no Ramadão
Chegou ao Porto e logo se tornou um homem das arábias. Pelo seu génio de futebolista, mas não só, também pelos seus ideais, que nunca escondeu. «Sou muçulmano, pratico o islamismo e sigo-o de forma rigorosa, sem desvios à religião do Islão. Em minha casa não há bebidas alcoólicas e não se come carne de porco. Bebo água, sumos, chá. Haverá quem, sendo muçulmano, não proceda assim, mas eu faço tudo o que manda a minha religião.» Por isso, ao nono mês do ano árabe, sujeitava-se ao jejum do Ramadão, entre as três da madrugada e as nove da noite, não comia carne, mas comia saladas, frutas, bolachas, tomava chá ou sumos e, naturalmente, não deixava de treinar-se ou de jogar. «Durante o Ramadão também só posso ter relações sexuais entre as oito da noite e as três da madrugada.» Mais diria: «Liberdade sexual é exagero que corrompe e destrói vidas; a homossexualidade é uma... doença, uma vergonha; a sida é coisa de Deus para terminar com o vício.» Mas, apesar de todo esse reaccionarismo de ideias e de moral, defendeu a existência de um estado judaico e maldisse o fanatismo religioso: «Quando somos fanáticos cometemos muitos erros. Eu creio muito em Deus e isso é o mais importante. Os fanáticos que matam em nome de Deus, blasfemam Deus. Deus não disse isso. Deus disse para nos amarmos uns aos outros como Ele nos amou...» Na época de estreia como dragão, Madjer campeão, graças, sobretudo, à vitória do Sporting de Manuel José, na Luz. E, com isso, o passaporte para a Taça dos Campeões, conquistada com a ponta do seu calcanhar. De ouro.
Corão no Prater e a «inspiração divina» do calcanhar
Rezou muito antes da final de Viena. A Alá, obviamente. Antes de subir ao relvado do Prater, pediu a todos os companheiros que tocassem no Corão que levara consigo. E que acreditassem. Todos o fizeram, alguns mesmo não acreditando. Para Rabah, o toque de calcanhar surgiu disso mesmo da «inspiração divina». Não muito depois, mais uma noite de magia. Em Tóquio. Num cenário natalício, o relvado coberto por níveo manto, foi de Madjer o golo que derrotou os uruguaios do Penharol. Foi eleito o melhor jogador em campo. Por isso, recebeu um Toyota de luxo, de prémio. Não quis o carro para si, vendeu-o, ainda no Japão, por três mil contos, dividindo o dinheiro por toda a equipa.
Viena e Tóquio, retalhos de ouro de um artista do futebol, um poeta do jogo. Que só o não foi mais porque um futebolista, mesmo genial, como Madjer, não pode viver deslumbrado, de olhos postos no seu umbigo. Não o contesta, mas... «De qualquer modo, poderia ter dado contribuição mais valiosa ao F. C. Porto se me tivessem deixado utilizar toda a minha intuição, toda a minha capacidade de improvisação. Só jogava... 65 por cento do futebol que tinha, os restantes 35 por cento eram o que eu gostaria de fazer e... não fazia. Era pena. Sentia que, de repente, poderia fazer um poema com a bola, uma finta, um passe, um golo, mas tinha de subordinar-se a certas indicações, era triste sentir a minha liberdade criativa coarctada. O golo de calcanhar foi fruto da minha intuição. O segundo golo, na final de Tóquio, contra o Penharol, no prolongamento, com que o F. C. Porto conquistou a Taça Intercontinental, também nasceu de um momento de inspiração.»
Se, antes de ingressar no Matra, Artur Jorge poucas vezes lhe deu essa liberdade, Tomislav Ivic nem tempo teve para pensar se lha deveria dar, pois em Janeiro de 1988, após Cruyff se dirigir ao Porto para levar Madjer para o Ajax, custasse o que custasse, Pinto da Costa decidira emprestá-lo ao Valência, até final dessa época em que o croata tudo ganharia no F. C. Porto, a troco de 300 mil contos. Mas o que Madjer queria era que tivesse sido o Bayern, que subjugara em Viena, o seu destino...
Porque Artur Jorge matou o poeta
Partiu Ivic, Quinito falhou, Artur Jorge voltou ao F. C. Porto. Por essa altura, rumores de que entre Madjer e Artur Jorge se aguçavam fricções. Rabah aquietou os espíritos, asseverando que as suas relações com Artur Jorge não eram o que se dizia. E, apesar de, em Abril de 1989, ter sido suspenso e impedido de entrar nas Antas, por se deslocar, sem ordem, à Argélia, para trabalhos de selecção, não deixou de ser arma preponderante para a reconquista do título nacional de 1989/90. Nesse comenos, aureolado com o título de melhor jogador de África, desmentiu, jurando com a mão sobre o Corão, ter dito o que o France Football escrevera: que no F. C. Porto de Artur Jorge os jogadores trabalhavam como animais!
Sá na temporada que se seguiu é que Madjer começou a sentir o céu a desabar-lhe sobre a cabeça. O Valência lançou-lhe, outra vez, o canto de sereia, Pinto da Costa retorquiu que Madjer era inegociável. O argelino gostou de ouvir o que ouvira e não calou o remoque: «Infelizmente, isso não me dá garantia de jogar, não é Pinto da Costa quem faz a equipa.» Ao que Artur Jorge, assumindo, já, claramente, o conflito, redarguiu: «Quem teima em jogar como quer e não como eu quero... não joga.»
A partir de determinada altura, deixou mesmo de ser convocado. Com o coração estilhaçado, voltou a remoquear: «Nem sequer suplente, só dá mesmo para... rir».
Partiu, no final da temporada, cirandou pelo Qatar, arrumou as chuteiras, fez-se treinador. Depois de rejeitar oferta para para voltar a jogar, no Japão, mandou dizer do Golfo que, logo que o F. C. Porto o chamasse, deixaria tudo, rumaria às Antas. Coisas do coração. Seria ainda seleccionador argelino e, em finais de 1993, ao Porto retornaria, como técnico no Departamento de Futebol Juvenil. Para ensinar, promete ele, com a mesma magia com que jogava. E, por enquanto, não o desmente, vai aquecendo o sonho de um dia se tornar treinador principal do F. C. Porto...