A MARIA RAPAZ QUE DEU VOZ AO HINO
A 31 de março de 1952, com 18 anos, Maria Amélia Canossa gravou pela primeira vez o tema do FC Porto
Maria Amélia Canossa nasceu antes da ecografia e da epidural, quando os pais esperavam um filho barão. Era uma pequena enfezada, conta a cantora, reproduzindo as palavras com que o seu avô a segurou no colo, enquanto a brindava com um olhar desconfiado. Em poucos anos tornar-se-ia uma Maria rapaz, com o futebol entre as suas brincadeiras prediletas. Desafiava rapazes e raparigas e ocupava, por simpatia, a posição de guarda-redes nas balizas improvisadas em terreiros e ruas. Esfolava os joelhos todos e a minha avó ficava danada, recorda com nostalgia.
Aquela paixão mal tinha nascido quando acompanhar a família ao Campo da Constituição se tornou um hábito dominical. Era fantástico, sorri. A cada vez que havia um golo, a bancada, toda em madeira, abanava. Estávamos sempre a ver quando é que aquilo caía. Mas o entusiasmo que o futebol lhe suscitava sucedeu à música, uma espécie de chama que quase nasceu com ela. A minha mãe tinha uma voz divina e o meu pai, que também gostava de cantarolar, era mais dado à ópera. Maria Amélia depressa assinaria contrato com a Rádio Triunfo, editora com a qual gravava três discos por ano. Aos 15 anos já tinha um certo nome, assegura.
A fama crescente não a impedia de acompanhar as deslocações do FC Porto a Lisboa. Fazia-o de comboio, entre grandes grupos de adeptos. Eu cantava para aquela gente, andava de carruagem em carruagem. Era uma alegria. Seguiram-se convites para as festas dos Dragões, na altura empenhados em recolher fundos para a construção do Estádio das Antas, e, mais tarde, o desafio do presidente Cesário Bonito. Pediu-lhe que interpretasse o hino do clube, já com letra de Heitor Campos Monteiro. Acedeu, incomodou meio mundo e só descansou ao ouvir os acordes de algo poderoso e com alma. É isto, maestro, é mesmo isto!, gritou na altura.
A 31 de março de 1952, com 18 anos, gravou o hino no Teatro de S. João, no Porto, pela madrugada dentro, quando a cidade dormia, para evitar o registo de ruídos indesejáveis. As pessoas saíram do cinema e entrámos nós. Orquestra e coro incluídos. Só então ficava tudo calminho. Passava das cinco da manhã quando terminaram. A matriz foi enviada para Inglaterra, de onde deveriam chegar os discos a tempo da inauguração do estádio, marcada para 28 de maio.
No Coliseu do Porto, subiu ao palco para a primeira interpretação do hino ao vivo. Equipou quase a rigor, pedindo emprestadas camisola, meias e sapatilhas, mas, apesar de ser muito para a frentex, não se atreveu a vestir calção. Mandei fazer uma saia com umas preguinhas muito fininhas até abaixo do joelho. Cantou, encantou e recolheu aplausos de pé.
O êxito do hino do FC Porto, cujo som passou a preceder o apito inicial dos jogos nas Antas, faria Maria Amélia Canossa voltar aos estúdios. Mas só 54 anos depois da primeira gravação. E 54 anos rigorosamente medidos. Novamente a 31 de março, mas de 2006, voltou a emprestar a voz ao canto épico dos Dragões. Aos 72 anos, então numa experiência digital e mais fria, apenas com um microfone pela frente e os auscultadores apertados entre as orelhas.
Estava só, apercebeu-se. Ouvia, sem ver, a Orquestra Sinfónica de Londres e escutava o coro que também não estava lá. Faziam-se apenas sentir noutras pistas previamente gravadas. Pouco à vontade, respirou fundo e fechou os olhos. Lembrei-me da emoção da primeira gravação, de todos os meus colegas, de como estávamos distribuídos no palco, e tudo se tornou mais fácil. Luís Jardim, editor discográfico e então júri do programa televisivo Ídolos, ficou satisfeito à primeira.
Depois das Antas, o Dragão. A consagração do campeão, frente ao Guimarães, e o lançamento do cd Tanto Porto, gravado nos estúdios londrinos de Abbey Road, historicamente ligados a alguns dos maiores êxitos dos Beatles, foi a razão do regresso ao relvado de Maria Amélia, que gerou um grito de espanto e incredulidade no neto, que se preparava para assistir ao encontro. Olha, a minha avó também vai jogar!, exclamou o pequeno, ao vê-la entrar em campo logo depois dos jogadores.
Mas não. Maria Amélia Canossa ia cantar. O hino. E surpreender-se quando, depois da interpretação perante um estádio cheio, foi abordada por Vítor Baía, que segurava a camisola 99 para lhe oferecer. O Vítor é o meu menino, adoro aquele rapaz, confessa, mesmo na presença do marido, que se limita a sorrir. No dia seguinte quase não pôde sair à rua. A cada vez que o fazia tinha alguém a perguntar-lhe pela camisola ou a roer-se de inveja. Ó D. Maria Amélia, que sorte você tem. Veja lá, você abraçadinha àquele borracho!, diziam-lhe. Orgulhosa, a cantora não nega a felicidade que o momento lhe sugere a cada vez que o lembra e chega a falar em sina ao estabelecer um paralelo com a posição que ocupava por gosto nas peladas entre rapazes e raparigas.